quinta-feira, 15 de novembro de 2018

As mortais ondas camelos da Ilha da Trindade


Após três dias de viagem a bordo do navio patrulha Amazonas, da Marinha Brasileira, uma porção de terra começa a aparecer. Vemos no horizonte a Ilha da Trindade. Quem desembarca nela enfrenta uma grande ameaça: a onda camelo, a principal causa de morte neste lugar tão distante. De 17 óbitos entre 1957 e 2018 - período da mais recente ocupação da Marinha -  pelo menos nove são vítimas do fenômeno.

Você deve estar se perguntando: como ocorre a onda camelo? Ela tem esse nome em Trindade, mas é um fenômeno comum em ilhas oceânicas. Ela vem como a corcunda de um camelo; em dupla, em um mar aparentemente calmo. A 'camelo' desperta grande preocupação, sobretudo durante as operações de embarque e desembarque de pessoal e de equipamentos.

Não há porto para desembarcar na Praia dos Portugueses, onde fica a sede do Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade (Poit). Por isso, o momento traz tensão. Chega-se à terra em bote inflável, puxado por cabo de aço no trecho final até a faixa de areia mais segura, longe da arrebentação. Os passageiros precisam manter a cabeça abaixada. Se o cabo se romper, o risco é um corte fatal no pescoço. E é assim que começa a visita a Trindade.

Praia do amor













A Praia do Príncipe é uma das mais belas da Ilha da Trindade. Segundo o escritor Moacir Costa Lopes, que esteve na ilha na década de 1950, o nome seria uma homenagem a um príncipe. Em 1700, como membro da expedição de Edmond Halley, o nobre teria passado a maior parte de seus dias na ilha, sentado em uma pedra nesta praia. Com olhar perdido no horizonte, pensava na amada, uma plebeia deixada na Inglaterra. Sua mãe o teria enviado na viagem justamente para afastá-lo da jovem.

Apesar da boa história, contada a mim pelo próprio escritor, que tem entre suas obras mais famosas "A ostra e o vento", esta praia ficou marcada por outra razão. Não foi pelo príncipe, o que até hoje não confirmei ter de fato visitado a ilha. É neste lugar que se registra o maior número de mortes provocadas pela onda camelo. No lado direito de quem desce um chapadão, há um rochedo que atrai muito os militares que gostam de pescar. É a Pedra da Garoupa. Quase uma armadilha.

O pedregulho parece o lugar perfeito para pescar. Mas, traiçoeiro. Após lançar a linha, não se demora a pegar um peixe graúdo. A facilidade de uma boa pescaria ocorre, porém, em toda a ilha, rodeada de cardumes, atraídos pelos nutrientes do arquipélago.

A primeira morte provocada pela onda camelo ocorreu quatro anos após a fundação do Posto Oceanográfico. Em 24 de novembro de 1963, o cabo Frutuoso do Carmo Ferreira foi arrastado da Pedra da Garoupa por uma onda. Ao cair na água, a vítima tem poucas chances para retornar. As ondas a jogam contra as pedras. O corpo apareceu próximo, na Enseada da Cachoeira.

As ondas camelôs fizeram mais duas vítimas na Pedra da Garoupa. Em 6 de julho de 1968, morreu o cabo Paulo Murilo de Abreu. O corpo não foi encontrado. Em 20 de janeiro de 1976, o capitão de corveta Eurico Bastos da Rocha foi atingido. O corpo apareceu na Praia do Príncipe.

Pedra da Garoupa


Na única imagem que consegui da Pedra da Garoupa, um vídeo gentilmente cedido por Victor Camilato Brilhante, podemos ter melhor noção dos riscos no local. Dois experientes mergulhadores enfrentam grande dificuldade para deixar a água, mesmo com o apoio de uma corda. Nas duas vezes que estive nesta ilha, uma em 2007 e outra em 2018, não tive oportunidade de ir até lá.

O número de mortos da onda camelo pode ser bem maior. As mortes aqui relatadas se referem apenas ao período mais recente de ocupação da Marinha.

 Em 1957 foi criado, efetivamente, o Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade, e desde então a ilha vem sendo guarnecida por cerca de 30 militares da Marinha do Brasil, que se revezam a cada quatro meses — explica o capitão de fragata Luiz Felipe Silva Santos, o coordenador do Programa de Pesquisas Científicas da Ilha da Trindade (Pro-Trindade).

A descoberta de Trindade ocorreu um ano depois da chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil. Inglaterra e Portugal já ocuparam e exploraram a área.

 Apesar das controvérsias, a maioria dos historiadores concordam que a ilha foi descoberta em 1501 pelo navegador português João da Nova. E, no ano seguinte, um outro navegador português, chamado Estevão (da Gama), deu nome à ilha a partir da visualização do mar de três pontos, que são os picos da ilha. Ele os relacionou com a Santíssima Trindade. Então, batizou a ilha de Trindade complementa Luiz Felipe.

O Arquipélago de Trindade e Martim Vaz fica a aproximadamente 1.200 quilômetros da costa brasileira. Equivale a 400 campos de futebol. Visitas só com permissão da Marinha, mesmo assim se destinadas às pesquisas científicas. 

Mais mortes


 A onda camelo ocorre em várias partes da ilha. Subestimá-la pode ser fatal. Em 16 de outubro de 1979, ocorreu a morte mais estranha de todas. O fuzileiro naval Robson decidiu mergulhar em um dos lugares mais temidos na ilha: o túnel criado pela força das ondas na base do que restou de um vulcão. A profundidade chega a 30 metros e as ondas explodem com violência nas paredes.






O lugar parece um caldeirão prestes a entornar. Em minha visita em junho de 2018, fiquei poucos minutos próximo à entrada do túnel. E logo o guia determinou que saíssemos logo. O temor é que, a qualquer instante, poderia surgir uma grande onda e nos atingir.

Foi neste cenário, há 39 anos, que Robson mergulhou para nunca mais voltar a ser visto. Ele havia amarrado uma corda na cintura e deixado um colega encarregado de puxá-lo caso demorasse a retornar. O objetivo era atravessar o túnel e chegar ao outro lado.

Preocupado com a demora de Robson voltar à tona, o amigo puxou, mas a corda veio solta. O corpo nunca foi encontrado. No registro da Marinha, informa-se que ele foi vítima de uma onda camelo dentro do túnel.

A série de mortes reinicia em 11 de agosto de 1984. Durante pescaria, uma onda camelo atingiu o sargento José Gomes de Souza, na Praia da Cratera. Nunca se localizou o corpo. Em 22 de outubro de 2005, registrou-se a sexta vítima: o sargento Luiz Antônio de Espírito Santo Leal. Uma onda o arrastou na Ponta do Norte. O corpo também não foi encontrado.

Flagrante da onda


Pude registrar o risco representado por uma onda camelo. Estava filmando um grupo de militares e pesquisadores na Praia do Parcel, quando subitamente duas ondas mais altas explodiram perto. Se alguém estivesse na ponta do pedregulho com um anzol, possivelmente poderia ter sido jogado na água.




São ameaças como essas que fez o número de óbitos crescer na ilha. Em 3 de junho de 2008, o sargento Eduardo José de Oliveira foi pego por uma onda camelo no Parcel. O corpo foi achado na Praia das Tartarugas. Em 17 de julho de 2010, a vítima foi o sargento João Domingos da Silva Filho. Ele morreu durante pescaria na Pedra da Garoupa, ao ser derrubado por uma camelo. O corpo só apareceu dois dias depois na Praia do Príncipe. A última morte desta relação ocorreu em janeiro de 2018 - a nona morte causada pela onda camelo. Não tenho nome nem patente do militar.

Outras mortes na ilha, entre 1957 e 2018, se devem a quedas nas trilhas, um infarte, um suicídio e até um assassinato. O crime ocorreu em um barco de pesca chinês que havia encalhado na Praia dos Portugueses. A tripulação amotinada matou o capitão. Hoje pouco resta da embarcação.

Para evitar mais mortes, sobretudo por afogamentos, há uma regra na ilha: saídas só são autorizadas com, pelo menos, três integrantes. Em caso de acidente, um deles fica com a vítima e o outro busca ajuda.

Montanhas submersas


Os riscos estão por toda a parte. O terreno vulcânico e acidentado representa grande perigo nas trilhas. Bem perto das praias a profundidade passa de 30 metros. A ilha é o topo de uma cadeia de montanhas submersas em um oceano de até 5 mil metros de profundidade.

E por que, então, manter a ilha ocupada? Tratados internacionais estipulam que só ilhas habitadas dão direito ao mar de 200 milhas ao seu redor. Estima-se haver muitas riquezas nesta região, parte da chamada Amazônia Azul.




A ilha é um lugar belíssimo e tema de muitos estudos, principalmente de Geologia, Oceanografia, Biologia e Botânica. Há uma estação científica, onde pesquisadores passam temporadas de dois meses. A Marinha dá apoio a todo esse trabalho.

Apesar de todos os riscos, a Ilha não desperta medo em quem a conhece. Visitantes costumam deixar relatos emocionados em um livro na sede administrativa. Escrevem que Trindade mudou a maneira como encaram a vida. É por essas e outras que a despedida costuma ser feita com muita emoção e tensão.

Há até bem pouco tempo, o transporte até o navio da Marinha era feito por uma jangada, puxada por cabo. Era apelidada de cabrita. Naveguei nela em minha primeira visita a Trindade, em 2007. Era preciso proteger todos os equipamentos com sacos plásticos. O risco de acidente era considerável. Uma pessoa já morreu ao cair na travessia.

Repare no vídeo que acompanha esta matéria, por exemplo, a partida de um grupo. Tudo parecia ir bem. Mas aí veio uma onda camelo e derrubou quase todo mundo. A luta contra a força das ondas e a correnteza exigiu muito esforço dos que caíram. Mas, felizmente, desta vez ninguém morreu.

Apesar da substituição da cabrita por botes infláveis, a travessia traz muitas preocupações. Afinal, há sempre o risco de surgir uma onda camelo.

4 comentários:

  1. Muito boa a matéria. Bem esclarecedora.

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    1. Obrigado, Nanda. Quase nunca venho ao blog. Costumo atuar mais no canal no Youtube. Mas vou passar a me dedicar mais aqui, porque muitos professores disponibilizam material e aqui é mais fácil de publicar. Grande abraço.

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  2. ótima matéria. Coloquei i nome de voluntário e estou aguardando ser chamado para ter a minha experiência.

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    1. Se você faz pesquisas em geologia ou oceanografia, será muito produtivo para você. Pelo que me falaram na época, muitos alunos conseguem a vaga entrando nos projetos já em andamento. E isso também vale para quem quer pesquisar na Antártica. Lá no canal no Youtube vou colocar outro vídeo sobre esta ilha. Tem um outro vídeo que fala sobre pesquisas em São Pedro e São Paulo. Boa sorte, Vinícius.

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