quarta-feira, 11 de setembro de 2019

A ilha brasileira mais perto da África que vai desaparecer


ÉLCIO BRAGA

O cenário é assustador: um punhado de rochedos pontiagudos forma um arquipélago, no meio do Atlântico, a mil quilômetros do continente. É o pedaço do Brasil mais perto da África: chacoalhado frequentemente por terremotos, menor do que dois campos de futebol, sem vegetação nem fonte de água doce. Mas brasileiros moram aqui desde 1998, dividindo o parco espaço com caranguejos e aves. Este é Arquipélago de São Pedro e São Paulo.

A parte mais alta destas ilhotas remotas tem apenas 18 metros, e a profundidade ao seu redor é de 4 mil metros. Para complicar, o mar por vezes em fúria se torna ameaçador. Mas há razões para o Brasil se esforçar tanto para manter gente morando em um lugar tão inóspito: a exploração do mar de 200 milhas ao redor.

Dez ilhotas de pedra formam o Arquipélago de São Pedro e São Paulo 
Há muitas curiosidades e histórias sobre este território. Esta é a única ilha oceânica no mundo formada pelo manto terrestre, uma das entranhas mais profundas da Terra. Um italiano perdido no mar, com fome e sede, só sobreviveu ao ser visto à deriva próximo aos rochedos, coincidentemente após um estranho sonho.

— O que eu fico pensando é: o que um cara como Darwin, o que ele pensou quando viu um negócio daquele — pergunta o sismólogo Aderson Nascimento, coordenador do Laboratório de Sismologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

QUEDA DE AVIÃO

Parte do trem de pouso no fundo do Atlântico
Apesar de sua importância, o Arquipélago de São Pedro e São Paulo é praticamente desconhecido no Brasil. Mas, após a noite de 31 de maio de 2009, os Rochedos ou Penedos, como eram identificados no passado, mereceriam menção até no noticiário internacional. O voo 447 da Air France, que havia decolado do Rio de Janeiro rumo a Paris, sofreu uma pane durante violenta tempestade. O Airbus A330-203 caiu com 228 pessoas a bordo nas águas profundas do Atlântico, a aproximadamente 300 quilômetros do arquipélago. Ninguém sobreviveu.

Parte do motor no leito marinho, a mais de 3.700 metros
O avião havia deixado o alcance do controle de tráfego aéreo no Brasil e ainda não havia entrado na área de controle do Senegal, no lado africano. A região da queda fica no meio do nada. E é nesse lugar que está a nossa ilha. Também foi um acidente que fez a nossa ilha entrar no mapa.

— A descoberta aqui dessa região está relacionada a um naufrágio que ocorreu aqui, nos idos de 1511. A nau São Pedro navegando por essas áreas, ela abalroou uma dessas pedras e acabou naufragando. Então, daí o nome São Pedro. O nome São Paulo você pode encontrar duas explicações ao São Paulo. Uma das explicações estaria no navio que veio fazer o socorro de São Pedro. Teria sido a nau São Paulo — observa o capitão-de-corveta Marco Antonio Carvalho de Souza, o coordenador do Proarquipélago, programa responsável pela ocupação e pesquisa no território ultramarino.

— Uma outra explicação para o nome São Pedro e São Paulo, em relação a formação geológica. São Pedro e São Paulo está localizada exatamente em cima de uma fratura, uma falha, chamada de Falha de São Paulo — diz a bióloga Danielle Viana.

DISTÂNCIA DA COSTA

 O Arquipélago de São Pedro e São Paulo está a exatos 988,9 quilômetros da nossa costa e é o ponto do Brasil mais perto da África: a aproximadamente 1.820 quilômetros das praias de Guiné-Bissau.

Para ir a São Pedro e São Paulo, só mesmo de barco. Mas, detalhe: este lugar não é aberto ao turismo. O acesso é apenas para pesquisadores e universitários que desenvolvam projetos, sobretudo, de geologia, oceanografia e biologia marinha. O embarque acontece em Natal, no Rio Grande do Norte, em navio da Marinha ou em pequenos barcos pesqueiros, contratados para baratear os custos.

O arquipélago pertence a Pernambuco, mas está sob controle do Programa Arquipélago de São Pedro e São Paulo, que reúne representantes de vários órgãos federais. Foi criado pela Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (CIRM), cujo coordenador é o comandante da Marinha.

 — De 15 em 15 dias sai uma expedição do Porto de Natal, transportando os pesquisadores para São Pedro e São Paulo. Uma embarcação chega com um grupo, rende a que está aqui e aquele daqui regressa para o continente. Aquela nova embarcação vai permanecer aqui com aquele novo grupo. Assim a gente mantém o arquipélago habitado continuamente. E esporadicamente nós programamos essas comissões em que aplicamos navios maiores, navios da Marinha, em que trazemos uma série de técnicos. Então, nessas ocasiões, fazemos a manutenção da parte elétrica, das edificações, de estruturas instaladas em São Pedro e São Paulo — diz o coordenador do Proarquipélago

A maior parte das viagens são em barcos pesqueiros.

— Aqui são os beliches em que os engenheiros de pesca dormem. O pessoal que vem, né? — diz o pescador Josué Medeiros da Silva.

— Aqui são os pescadores… Tem mais quatro beliches aqui, né? O pessoal dorme aqui — prossegue ele, mostrando os estreitos espaços para o descanso.

— Aqui é a primeira classe? — pergunto.

— Eu durmo aqui, o mestre, o despachante… — acrescenta Josué.

— É apertadinho aqui, não? — observo.

— É um pouco apertado — concorda o pescador.

— Cabe quantas pessoas aqui no barco?

— Oito, a tripulação... os pescadores aqui são oito. E os viajantes são 12 no total — assinala Josué.

O arquipélago é castigado pelo mar agitado

VIAGEM NO ARAGUARI

Em minha viagem, em setembro de 2016, dei sorte. Embarquei em um moderno navio patrulha da Marinha, o Araguari.São três dias de viagem para percorrer os mil quilômetros entre céu e mar até o destino. A gente só consegue perceber com clareza o arquipélago quando chega bem perto. O desembarque é feito em etapas. Primeiro, você segue em bote inflável até o barco de pescadores e dali pega uma pequena embarcação até a Ilha Belmonte, a maior e a única ocupada.

Você sobe uma pequena escada e, enfim, pisa, digamos assim, em pedra firme. Não há areia. Em frente está a pequena estação e, à direita, o farol, com a antena parabólica. E não há mais nada.

 — Essa ilha aqui tem 120 metros de lado e 90 de profundidade. Então, você vê que é um lugar extremamente pequeno. Agora as outras ilhas são mais inóspitas, mais difíceis de a gente chegar. Passarinho passou e fez uma graça comigo. Fez uma guerrinha — diz o capitão-tenente José Bento.

Mas isso não quer dizer que não haja o que fazer.

 — Essa ilha é singular. Ela é um laboratório natural. Aqui nós encontramos com facilidade acesso para estudo nas mais diversas áreas, não só da Biologia Marinha, mas como da Meteorologia, da climatologia… - diz o professor Jorge. - Pra nós pesquisadores, o arquipélago é um laboratório que está permanentemente fundeado no Oceano Atlântico — diz Danielle.

— Qualquer geólogo daria um dedo para poder estudar isto aqui — diz o biólogo Moyses Cavichioli.

O arquipélago é como se fosse um oásis. Um dos estudos avalia a cadeia alimentar. O guano, as fezes das aves, que dá cor esbranquiçada às pedras, é arrastado pelas ondas e atrai microrganismos, que atraem os pequenos peixes, que atraem os maiores e que acabam atraindo os grandalhões, como o tubarão-baleia, de até 14 metros de comprimento. No vídeo, você pode ver o biólogo Bruno Macena nadando com um exemplar. O animal, felizmente, não é agressivo.

Há outras espécies não tão amistosas.

 — Nesta região aqui tem muito tubarão? Você já viu muito tubarão, não? — pergunto ao pescador
Alderi Siqueira, que faz a ligação, em pequeno bote, entre a ilha e o barco de pesca.

 — Tem muito. Tem vezes que a gente não consegue nem contar ao redor do barco — responde ele, que há dez anos pesca nos rochedos.

 — Você sabe qual é a espécie?

 — Lombo preto e martelo — responde Alderi.

 — Martelo ataca… — atesto.

 — Ele é meio agressivo, mas até agora aqui nunca teve ataque — pondera.

UM LUGAR QUE TREME
Superfície é formada pelo manto terrestre que aflorou

 No arquipélago, há mais com o que se preocupar. Terremotos…

 — Já tive oportunidade de sentir terremoto tanto embaixo d’água como aqui na ilha, né? A penúltima vez que estivemos aqui fazíamos imagens subaquáticas e a gente sentiu. Foi quase cinco pontos na escala – diz a bióloga Danielle Viana.

 — Os tremores aqui raramente atingem uma pontuação mais alta na escala Richter. São bem amenos. Mas, sim, tem registro, assim, de tremores consideráveis — atesta o biólogo Moyses Cavichioli.

 — Já foram localizados um total de 362 eventos sísmicos com magnitude variando de 1 a 6.2, este maior, ocorrido no início desse ano — completa o geofísico Guilherme de Melo, do Laboratório de Sismologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

 Em mergulho na enseada, percebemos o acentuado declive rumo as profundezas do Atlântico. Os rochedos são o topo de uma cadeia de montanhas submersas.

 — A região aqui está sujeita a terremotos frequentes. São Pedro e São Paulo aflorou exatamente sobre a Falha de São Paulo, uma falha que percorre todo o Oceano Atlântico. São Pedro e São Paulo se ergue de uma profundidade abissal, cerca de quatro mil metros de profundidade, exatamente sobre esta falha, a partir desta falha. Então, é uma região que treme com muita frequência — diz o capitão de corveta Marco Antonio Carvalho.

 — Se a gente entende bem aquela região do ponto de vista do que está ocorrendo em termos de terremoto, a gente tem muito mais informação sobre os detalhes de como está sendo a abertura entre as duas placas tectônicas, entre a placa sul-americana, que o Brasil está dentro dela, e a placa africana — explica o sismólogo Aderson Nascimento.

 Não é à toa que estes rochedos chamaram a atenção de Charles Darwin, durante viagem no HMS Beagle. Em 16 de fevereiro de 1832, o naturalista inglês desembarcou na ilha Belmonte e constatou que a formação era diferente da de ilhas vulcânicas. Mais tarde, se descobriria que ao tocar no solo desta ilha estamos tocando nas profundezas da Terra.

 — Esta ilha tem uma característica muito interessante que é a única ilha oceânica composta pelo manto. A maioria das outras ilhas e cordilheiras é a partir do núcleo ou da crosta terrestre — diz Moyses.

 — Quando você caracteriza a Terra em diversas camadas, tem uma camada um pouco mais superficial que é a crosta. Em regiões oceânicas, a crosta tem pouco mais de 10 até 15, no máximo 17 quilômetros. A partir disso, tem uma transição, um outro tipo de rocha, que são rochas mantélicas. São nestas rochas, basicamente, que as placas tectônicas repousam — assinala o sismólogo Aderson Nascimento.

 — Então, ela tem esta característica única que é o sonho de qualquer geólogo que é estar aqui e ter amostra desta rocha, o peridotito serpentinizado — acrescenta Moyses.


Em dias de ressaca, a estação sofre com as ondas

ABERTURA ENTRE CONTINENTES

 Se este lugar é tão estranho, tão adverso, por que mantê-lo ocupado?

 — Há cerca de 160 milhões de anos, o processo de abertura entre os dois continentes se iniciou. Entre esses dois continentes você forma lugares com potencial petrolífero e de mineração também muito alto — diz Aderson.

 Para ter direito a esta riqueza, o Brasil precisou agir rápido.

 — São Pedro e São Paulo veio, efetivamente, a despertar o interesse, quando da promulgação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos do Mar. Esta convenção é que estabelece que as ilhas que não se prestam a habitabilidade não tem direito a esta zona econômica exclusiva — observa Marco Antonio Carvalho.

 Em 25 de junho de 1998, inaugurou-se a primeira estação científica no arquipélago.

 — Garantir esta ocupação contínua permite ao País legitimar uma área de zona econômica exclusiva de aproximadamente 450 mil quilômetros quadrados. Assim, ampliamos a nossa Amazônia Azul, já tão grande, que esconde um patrimônio gigantesco — ressalta Carvalho.

 Mas a primeira estação no arquipélago duraria pouco...

No ano seguinte à inauguração, grandes ondas destruíram parcialmente a sede. Em 2006, barreiras de proteção foram instaladas. O mar surpreendeu novamente e causou graves danos à estação. Uma nova sede foi construída em área mais protegida e com sapatas elevadas, resistentes a terremotos. Mas, o mar em fúria voltou a assustar em 29 de maio de 2014. Os quatro pesquisadores, que passavam temporada de 15 dias, correram para o farol, a parte mais alta na Ilha Belmonte, e se refugiam em um abrigo de emergência.

— Lá em cima a gente tem um abrigo, um shelter, onde nos casos mais extremos aqui no arquipélago, quando acontece situações inesperadas, o pessoal que está aqui vai para lá. Lá nós temos água, ração para sobrevivência durante cinco dias. E aqui a gente sabe que está tudo bem agora, de repente o mar fica agitado, o pessoal tem de se recolher a um lugar seguro. Então, lá está o nosso shelter — diz José Bento, o encarregado da manutenção.


A futura estação ficará amais de três metros do solo

Um terceiro projeto promete deixar, enfim, os pesquisadores mais seguros.

 — Uma vez que essa nova estação a pretensão é instalá-la a uma altura de cerca de três metros em relação ao solo. Assim, vamos trazer mais segurança no que se refere ao impacto das ondas. O incômodo com as ondas vai praticamente deixar de existir para o pesquisador. Mas em função principalmente dos tremores frequentes nesta região há necessidade de se chegar a um dimensionamento de estrutura que seja compatível com essa realidade — diz Carvalho.

 Apesar da ameaça permanente do mar, um antigo estudo estimou o crescimento do arquipélago. Uma nova coleta de dados, iniciada em 2015, oferecerá um dado mais preciso.

— O que a gente também tem, além da estação sismográfica lá, e isto é uma novidade, é uma estação total de GPS, que está funcionando lá há cerca de um ano. Esta estação total é que vai dar a taxa atual de crescimento, de soerguimento da ilha. O que a gente tem é de 1,5 a 2 milímetros por ano, mas isso é uma taxa média de datação de corais, na ilha — observa Aderson.

 A natureza nos surpreende em São Pedro e São Paulo.

A TRAIÇÃO DOS ATOBÁS
A ave divide a ilha entre os solteiros e os casados

 Se você acha que a vida é dura para os pesquisadores, é porque desconhece o perrengue dos atobás. A vida é sobre as fezes.

 — Eles fazem muito coco e o branquinho é exatamente o guano  — observa a bióloga Danielle Viana.

 Tem de tudo. Invasão de domicílio, adultério, bigamia, infanticídio, briga entre vizinhos, abandono de incapaz…

 — Eles são meio desengonçados. Eles não conseguem pousar exatamente no local certo, no local do ninho deles. Quando isso acontece, como aconteceu agora há pouco, eles acabam brigando. Eles são extremamente territorialistas e são agressivos — diz a bióloga.

 A principal ilha, a Belmonte, é dividida entre os casais, que ocupam a parte mais nobre, entre a estação e o farol. Os solteiros ficam na região mais plana e baixa, sujeita às ondas. Não é difícil identificar machos e fêmeas.

 — Olha a cor do bico dela é mais puxado para o rosa. E esse outro que está ali tem o bico mais puxado para o amarelo esverdeado. É o macho. A cor do bico é a cor da patinha — diferencia Danielle.

Um casal de aves se tocam com o bico.

 — Troca de carinho, mas o macho quando ele quer copular, sobe em cima das costas das fêmeas — explica Danielle.

Um outro atobá parece tremer.

 — Esse comportamento de ficar airando, tremendo a garganta, é para tentar amenizar o calor — esclarece.

 — Até um determinado tamanho ele não consegue se alimentar sozinho. Então, o macho e a fêmea capturam o peixe e regurgitam na boca do filhote.

 Mas, aí começam os problemas.

 — Às vezes, acontece de eles chocarem dois ovos ao mesmo tempo. Quando acontece de eclodirem os dois ovos, geralmente o filhote mais forte, ele acaba expulsando o mais fraco do ninho. Exatamente porque os pais não têm condições de alimentar os dois. Só o mais forte sobrevive — diz Danielle.

 — Chega um momento, entre dois meses e meio e três meses, que os pais decidem expulsar o filhote do ninho. E aí é surra. Dão surra até o bicho sair. A intenção é exatamente essa. Desocupar o ninho para que eles possam gerar uma nova prole — diz.

 Na parte menos nobre da ilha, todo machucado, o jovem atobá buscará companhia. A missão é mais fácil para o macho. O número de fêmeas é 12 por cento maior.

 — Saiu do ninho, ele tem de procurar uma fêmea. Procurar um espaço para ter o próprio ninho, e gerar filhote, continuar a prole — conta a bióloga.

 Em uma ilha sem vegetação, quase não há material para confeccionar o ninho. Com disponibilidade maior de fêmeas, os machos pulam a cerca.

 — Muitas vezes, o macho toma conta de dois ninhos. Como falta material, ele fica levando de um ninho para o outro — diz Danielle.

 A ilha é pequena, mas guarda muitas histórias...

PERTO DA MORTE
O italiano Alex Bellini: sorte

A morte está próxima para o italiano Alex Bellini. Ele está perdido em um barco a remo no meio do Atlântico. Aos 28 anos, parece ser o fim da aventura de atravessar sozinho o Atlântico, depois de partir de Gênova, na Itália, rumo a Fortaleza, no Ceará. Em uma travessia cheia de contratempos, teve o barco virado por duas grandes ondas. Parte dos alimentos se perdeu, outra se estragou. Após quase seis meses, ele se vê sem nada para comer havia cinco dias.

 Mas há um fio de esperança. Por rádio, recebe orientações de amigos na Itália sobre um arquipélago brasileiro naquela região. Mas o território nem sequer constava em suas cartas náuticas. E pior: a ondulação do mar escondia o baixo relevo das ilhotas. O italiano não vai achar nada.

Só um milagre o salvará. A sorte está com Bellini. No barco que dá apoio às pesquisas no Arquipélago de São Pedro e São Paulo, um pescador percebe algo alaranjado flutuando no horizonte, no imenso mar azul. É o barco à deriva com o italiano exausto e faminto.

 A comitiva que estava comigo precisou se apertar para caber na estação na única noite que passamos lá. Fiquei com a beliche de cima em frente à janela. Graças a isso pude fazer uma imagem, ainda na cama, no amanhecer de 24 de setembro de 2016.

O sol aparece e se torna abrasador nos primeiros momentos do dia na única ilha oceânica brasileira acima da linha do Equador. Às 6h, fui para o farol fazer imagens gerais. Depois de gravar algumas entrevistas, soube do caso do italiano perdido.

 — A ilha tem muitas histórias. Mas a minha favorita é a de um aventureiro italiano que queria atravessar o Atlântico em um caiaque – diz a bióloga Danielle Viana.

Bellini foi resgatado por pescadores baseados na ilha

Ao voltar para o continente, consegui localizar o aventureiro Alex Bellini, morando em Londres, dez anos após o resgate. Por videoconferência, Bellini contou sobre a fantástica experiência em 2006.

 — Cheguei a um pequeno arquipélago, muito feio, cheio de rochedos, cobertos de guano das aves marinhas. Não havia lugar para sentar. Mas, mesmo assim, representava a minha sobrevivência  — recorda o navegador Bellini, hoje com 40 anos.

 — Eu parecia mais morto do que vivo. Muito magro, cansado. Fui recebido como um náufrago pelo fato de ter ficado cinco dias sem comer. A primeira coisa que perguntei foi por água e comida, mas negaram.

Por fim, perguntei a Bellini sobre uma estranha coincidência em seu resgate que envolve o nome dos santos. Então, ele me explicou que assim que chegou a ilha Belmonte conseguiu ligar para um amigo e informar a todos que estava salvo.

 — Quando contatei meu amigo por telefone e disse que estava no Arquipélago de São Pedro e São Paulo. Ele ficou congelado. Ele me disse: “Alex, você não vai acreditar. Mas, minha mãe”, a mãe de meu amigo, “tinha sonhado que você estava pendurado ao campanário de nossa paróquia de Aprica.” A igreja de Aprica é em homenagem a São Pedro e São Paulo. O santo padroeiro da cidade é São Pedro e São Paulo. E a mãe do meu amigo havia sonhado comigo agarrado ao campanário de São Pedro e São Paulo. É bastante misterioso, uma bela coincidência: era efetivamente o que eu estava fazendo: agarrado à esperança de sobreviver com a proteção de São Pedro e São Paulo.


Bellini com pesquisadores no barco que dava apoio à estação

Notas:

1 - Depois de se recuperar, Alex Bellini partiu do arquipélago e chegou a Fortaleza, totalizando 226 dias de navegação na travessia do Atlântico. Em 2008, Bellini fez a travessia do Pacífico.

2 - Análise preliminar do Laboratório de Sismologia da UFRN, em maio de 2019, indica que a taxa de soerguimento é negativa, mas menor que 1 mm por ano. Estima-se que em até 50 mil anos, devido à erosão e por estar sobre a Falha de São Paulo, o arquipélago poderá estar completamente submerso.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Quem matou Gertrudes Pedra Carneiro Leão?

O assassinato da mulher do primeiro presidente do Banco do Brasil, há 200 anos, é o maior crime passional de todos os tempos no Brasil 


ÉLCIO BRAGA


É tarde da noite de 8 de outubro de 1820. Uma mulher e suas duas filhas voltam de um evento religioso no Centro do Rio de Janeiro. Quando a família chega em casa, em frente à Ponte do Catete, ouve-se um tiro de bacamarte.
O disparo acerta Gertrudes Pedra Carneiro Leão, uma das mulheres mais ricas do Brasil. Ela cai morta diante das filhas. O crime envolve o topo da elite no Brasil: o Rei D. João e sua mulher, a Rainha Carlota Joaquina, e o marido de Gertrudes, o presidente do Banco do Brasil, Fernando Carneiro Leão.



O Rio de Janeiro em peso se perguntava em 1820: Quem matou Gertrudes Pedra Carneiro Leão? O assassinato completa em 2020 dois séculos sem solução.
O Rio era uma cidade tranquila de 120 mil habitantes, sede do vasto Reino de Portugal, Brasil e Algarves.
Neste vídeo você vai saber porque a maior suspeita do crime recai sobre Carlota Joaquina, apontada como a amante de Fernando. Será que uma discussão entre a rainha e a esposa do ricaço na porta de uma capela teria provocado o assassinato?
Ouvi historiadores que concordam e discordam de vários pontos desta trama. No final, teremos o veredito. Vamos aos fatos.


Os Carneiro Leão


A família Carneiro Leão era rica e poderosa.

 O Braz Carneiro Leão é o primeiro da família a chegar no Brasil. Ele nasce em Portugal por volta de 1732. Ele era de uma família de comerciantes de grosso calibre como se dizia. Tinham sete navios para se ter uma ideia  — diz o historiador Paulo Rezzutti.

Braz Carneiro quer que o filho se prepare para comandar os negócios. 

 O Braz Carneiro Leão manda o filho dele, o Fernando, aprender o ofício de comerciante não com ele, mas com o restante da família, que era a família Pedra, em Lisboa, que era uma casa de comerciantes. Assim, mais absurdamente milionária do que o pai dele — acrescenta Rezzutti.

A gravura de Jean-Baptiste Debret, membro da Missão Artística Francesa, retrata o Largo do Rossio (atual Praça Tiradentes)

A Família Pedra é quem financiou a vinda da missão artística francesa, em 1816. A arte retratou o Brasil da época. 

 Fernando Carneiro Leão se apaixona lá em Portugal, trabalhando nos armazéns da família Pedra, pela filha, a herdeira dos Pedra, que era Gertrudes Clara Pedra que depois viria a ser Gertrudes Carneiro Leão — diz o historiador.

O casal terá de viver no Brasil.

 Com a morte do pai do Fernando, em 1808, aproximadamente, o Fernando volta e traz consigo a portuguesa, Gertrudes Carneiro Leão, casada com ele, com dote milionário.

Mas não temos imagens de Gertrudes.

— Diziam que era bonita, mas eu nunca vi foto, absolutamente nada — diz Rezzutti. 

O casal Fernando e Gertrudes aparece em ‘Carlota Joaquina, Princesa do Brazil’, uma comédia/ficção histórica, dirigida por Carla Camurati. Mas há uma observação.

— Ao contrário do que aparece no filme da Carla Camurati, ambos eram brancos observa Milton Teixeira. 

A confusão vem provavelmente da rixa com os aristocratas.

— Os nobres vão tentar jogar contra os Carneiro Leão  —  assinala Paulo Rezzutti  . Vão começar a falar os aristocratas que eles eram mais escuros, que eles eram mais morenos, e por conta disso que tinham negros na família. Era pensamento racista na época. Era você denegrir dizer que a pessoa não era, como se chamava, pura de sangue. Então isso daí entra como um dos ataques dos aristocratas contra eles, essa classe endinheirada, como eles diziam. 

Sem imagem de Gertrudes


Embora não tenha deixado nenhuma foto ou gravura, Gertrudes poderia ter alguns desses traços (veja reprodução do quadro acima). Este é o quadro de sua filha mais velha, a Marquesa de Maceió.
Nem mesmo conhecemos a data de nascimento de Gestrudes. Sabemos, porém, que Fernando nasceu em 1782 e tinha 38 anos em 1820.

 — Nós não temos imagens de nenhuma dessas pessoas  — alerta Teixeira  . Nem do Fernando Carneiro Leão nem de Dona Gertrudes. Ah, mas temos da Carlota. Sim. Você pega todas as imagens da Carlota Joaquina nenhuma casa com a outra. Ela devia ser uma figura tão feia que os pintores no ímpeto de agradar procuravam consertar o rosto dela. Eu tive o cuidado de reunir o máximo de retratos de Carlota Joaquina para uma aula que tive de dar e você vê que não há correlação. Parecem pessoas diferentes. Mesmo retratos executados em épocas muito próximas. 

Com o dote milionário de Gertrudes, Fernando fortalecerá os negócios da família.

 —  A família tinha ganhou muito dinheiro com o comércio de alimentos e  — por que não dizer?  —  também com o tráfico de escravos.

Napoleão invade Portugal (quadro de
Jacques-Louis David)
Fernando é beneficiado por um acontecimento histórico. Napoleão invade Portugal e leva a corte a deixar o país. Rezzutti explica.

 — O que está acontecendo no Rio de Janeiro nesta época?  Em 1808, a família imperial veio para cá. Eles estão abrindo os portos. O Fernando Carneiro Leão é um dos primeiros a aproveitar esta abertura dos portos e começar a negociar diretamente com a Inglaterra sem passar pela metrópole. Eles enriquecem absurdamente. Se tornam uma das famílias mais ricas do Rio de Janeiro.

A influência de Fernando cresce na corte. Ele se torna o maior acionista do Banco do Brasil que será criado por D. João.

 —  Fernando ganhou o título de Visconde de Vila Nova de São José e depois ganharia a presidência do Banco do Brasil  — diz Milton Teixeira.

A relação próxima com a conturbada família real será explosiva. Você verá…

Carlota Joaquina 


 —  Carlota era a filha primogênita do Rei da Espanha  conta o historiador argentino Marsilio Cassotti  —.  A infanta primogênita, a qual na Espanha tem uma grande tradição, porque as mulheres, na falta do herdeiro varão, podem ser rainhas. Portanto, uma menina pequena tomou consciência de que era a filha mais importante do rei. E pensava que um dia chegaria a ser rainha da Espanha, no entanto, os seus avós tinham outros planos e a casaram, aos dez anos, com o herdeiro do trono de Portugal, D. João VI.

Carlota tem 11 anos quando vai morar com D. João, que tem 18 anos. A menina que vinha da Corte espanhola, mais liberal e animada, explica Cassotti, vai estranhar a conservadora vida palaciana portuguesa.
Carlota, ao 10 anos, casa com D.João
(quadro de Mariano Salvador Maella)

—  Sua entrada na Corte de Lisboa foi bastante acidentada. Porque entrou como uma espanhola soberba, criticava a todos os portugueses, e não foi amada. Encontrou um marido que não correspondia às suas expectativas. Dona Carlota considerava D. João um incapaz, e que era muito mais preparada que ele. Então, como D. João não a deixar ter o poder, organizou um golpe praticamente de estado, para colocar D. João em um manicômio. A partir desse momento, se produz o que os documentos chamam de separação de camas. Eles que haviam tido nove filhos deixaram de ter relações. E, a partir desse momento, começaram a se espalhar boatos sobre os amantes de Carlota. Mas nos documentos não aparecem de nenhuma maneira.
Mas não há unanimidade sobre Carlota.

—  Carlota Joaquina, assim como D. João, tinha as suas escapadelas  — entrega o historiador Milton Teixeira. Afinal de contas, ela mesmo dizia, que dos nove filhos só cinco foram com D. João. E aqui, no Rio de Janeiro, ela teve alguns amantes, e o mais famoso deles foi Fernando Carneiro Leão. 

Paulo Rezzutti reforça a ideia de que a fidelidade não era uma das virtudes da rainha.

—  Segundo o próprio D. João VI, ele reconhecia dois ou três filhos como sendo dele. Ele dizia ter certeza que D. Miguel não era filho dele. Que ela era ou não amante, eu não vou colocar a mão no fogo por ela não, viu? 

No Rio de Janeiro, onde a Coroa portuguesa se protegera de Napoleão, D. João e Carlota não ficam debaixo do mesmo teto. O que facilita as fofocas. D. João vive no Palácio São Cristóvão, na Quinta da Boa Vista. Carlota, em Botafogo.

 —  Flamengo e Botafogo era tudo bairro da aristocracia da época, onde ficavam as chácaras, as grandes mansões. Eles fugiam do Centro da cidade que era um lugar mais pestilento  — esclarece Rezzutti. 

Dona Carlota, após brigar com D.João, vai morar em casarão na Praia de Botafogo (quadro de Willian Gore Ouseley) 


Milton Teixeira dá o endereço da rainha.

— Dona Carlota morava na Praia de Botafogo, na esquina do que é hoje a Marques de Abrantes com a praia, onde hoje são os edifícios Paraopeba e São João Marcos.

Dona Carlota vai mudar de endereço. Seria para se aproximar de Fernando?

—  Ela mudou de residência para morar em frente ao Fernando Carneiro Leão, em 1818, Ela foi morar na Rua do Catete, esquina com Rua das Laranjeiras em uma chácara que ia até onde hoje é, mais ou menos, a Pinheiro Machado  — acrescenta Teixeira. 

Carlota Joaquina, a rainha (autor desconhecido)
O que muitos historiadores acreditam é que Fernando e Carlota já eram amantes. Os boatos sobre o adultério teriam começado a se espalhar. Um episódio deixaria claro a tensão entre a rainha e a esposa de Fernando.

O local das missas no bairro, segundo Milton Teixeira, ficava na propriedade de Dona Carlota.

— Dentro da chácara dela tinha uma capelinha. Que é a única capela que existia ali, naquele trecho.

A capela ficaria onde hoje é o colégio Franco-Brasileiro. É ali, possivelmente, que ocorre um embate entre as rivais, descrito aqui por Milton Teixeira.

— E diz que num domingo desses, Dona Carlota Joaquina se encontrou com Dona Gertrudes. Dona Gertrudes, muito católica, devota de Santa Gertrudes, sentiu-se ofendida com a presença da rainha, assim não se sabe o que que houve, se uma provocou a outra, e parece que Dona Gertrudes colocou Dona Carlota no seu devido lugar, chamou-a de ‘prostivagaranha’ ou coisa pior. Então, Dona Carlota não gostou nenhum pouco. Até porque a coisa deve ter sido pública. Nenhuma das duas andava sozinha.

Para alguns, naquele momento, Gertrudes teria assinado a sua sentença de morte.

A Ponte do Salema sobre o rio, em frente ao casarão onde morava Gertrudes, no Flamengo (pintura de Ouseley)  

O crime


— Em 8 de outubro de 1820, por volta das 11 horas da noite, a Gertrudes está voltando para a casa dela, para o solar que eles tinham, na chamada Ponte do Catete. Essa Ponte do Catete é onde hoje fica a Praça José de Alencar, no Flamengo. Tinha um rio lá que passava. Então tinha uma ponte, onde hoje é o largo, e a casa deles ficava ao redor desse largo  relata o historiador Paulo Rezzutti. 

O criminoso está à espera de Gertrudes.

— Ela está descendo da carruagem dela com as duas filhas. Elas tinham voltado de algum evento religioso, no Centro do Rio. E ela é alvejada por um tiro de bacamarte e morre.

A partir deste tiro, há muitas versões, nenhum documento. De concreto, nada se sabe sobre as investigações da época do crime.

— Aí, depois, vai ter várias discussões de quem teria sido o mandante  — observa Rezzutti  . Sobra até para a Rainha Carlota Joaquina. Por duas razões. Uma delas é que o Fernando seria amante dela e Gertrudes, esposa do Fernando, teria descoberto tudo, e tinha ameaçado dar um escândalo. A outra é que ela (Carlota) queria se livrar da esposa que a estava incomodando. E uma outra hipótese é que ela (Carlota) queria comprar a casa dos Carneiro Leão e se mudar para lá. Isso não faz muito sentido, porque ela tinha uma casa muito melhor em Botafogo, dando para a praia, que é onde ela realmente ficava. 

O livro de Mello Moraes, de
1869, vai incriminar Carlota
Quase 60 anos depois, um livro revela a mandante do crime.

— Essas discussões vão entrar para a História por volta de 1880, 1870, quando é lançado no Rio de Janeiro, um livro chamado “Crônicas Gerais do Brasil Império”. O Alexandre de Mello Moraes, que é o autor. O começo do anedotário sobre a Família Real brasileira vai começar a se difundir mais através desse livro dele. Então, ele vai colocar nesse livro que a Marquesa de Maceió, que era a filha da Gertrudes e Fernando, afirmava categoricamente que tinha sido a Carlota Joaquina que tinha mandado executar a mãe. 

Paulo Rezzutti resume a versão de Mello Moraes.

— O José Albano que era o desembargador da época chega a conclusão que a Carlota Joaquina teria mandado matar a Gertrudes. Ele um mero desembargador não poderia mandar prender a rainha. Então, isso tinha de partir do rei. Então, ele entrega o processo a D. João VI para ver o que faz.

Milton Teixeira prossegue com a versão.

—  D. João teria mandado queimar o processo não sem antes ter dito: ‘Mais um crime desta pérfida mulher”. 

—  Esta parte de 'jogar no fogo e esquecer a História' justifica porque não existe o inquérito. Não existe uma prova cabal desse processo que culparia a Carlota Joaquina. É tudo meio nebuloso   —  pondera Rezzutti. 

D. João teria mandado queimar o inquérito que
incriminava Carlota (quadro de Albert Gregorius)

No relato tardio, surge, enfim, o suspeito de executar o crime.

— Carlota Joaquina teria contratado um negro, um ex-escravo, chamado Corta-Orelha, que era um assassino da época, que nunca foi achado. O Mello Moraes diz que procurou, achou pistas, mas nunca conseguiu achar um negro para confirmar ou não esta história  destaca Rezzutti. 
Uma versão é que Corta-Orelha ou Orelha teria sido preso.

—  Eles tinham conseguido prender o assassino, que chamava-se Joaquim Inácio, vulgo o Orelha, que depois de assassinar Dona Gertrudes, ele se mandou para fora do País e, por algum motivo, retornou logo depois. Quando retornou, ele foi preso. Foi preso, e entregou a mandante, que seria a Carlota Joaquina  — conta Milton Teixeira. 

Um tiro certeiro

O assassino estava preparado. A arma possivelmente usada no crime, o bacamarte é poderosa.

— Sobre o dano do bacamarte, é bem pesado. O que você acha de um cano de três quartos de polegadas, soltando seis esferas de calibre 44 na sua direção? Tem relatos de bacamartes acertando 40 jardas, dá mais ou menos uns 40 metros  — comenta o especialista em armas Cláudio Chuva. 
Mas, possivelmente, o assassino devia estar bem mais perto de Gertrudes. Nenhum fragmento do disparo atingiu as filhas que a acompanhavam.

— Não é qualquer um que vai dar um tiro com esta arma. Como no bacamarte o tiro dispersa, não é uma munição única, são várias munições em um cano largo, ele não tem tanta precisão. Ele é justamente para dar dano em curta distância. Se faz um disparo a cinco metros, ele não consegue acertar as crianças. Se tiver uma mira descente, não acerta as crianças. Crianças de mãos dadas com a mãe. Acerta no tórax, tranquilo.

Um tiro de bacamarte, provavelmente, matou Gertrudes
A conclusão é que um único tiro ceifou a vida de Gertrudes.

— Provavelmente, ele deu só um tiro mesmo  conta Claudio Chuva  . Esse tipo de mecanismo de armamento da época requisitava muito do atirador para poder fazer um novo tiro. Era praticamente uma arma de tiro único. Especialmente, quando você está tentando emboscar alguém. Cada disparo que você vai dar, você tem de tirar a varetinha, tirar o excesso de pólvora, botar a ignição, fechar, trazer o cão à retaguarda, botar mais pólvora, botar bucha, botar o projétil, socar tudo lá dentro e depois atirar. Atiradores de guerra, experientes, demoravam entre um e um minuto e vinte para fazer isso. Não vai ser o Corta-Orelha que vai fazer em menos de um minuto. 


Catete e Botafogo, por volta de 1867: uma cidade tranquila (foto: Georges Leuzinger /Leibniz-Institut fuer Laenderkunde)


Para Milton Teixeira, a investigação deve ter concentrado, praticamente, toda a atenção da polícia. E não é só pela alta posição da vítima na sociedade.

—  Naquela época, 1820, o Rio de Janeiro tinha uma média de três assassinatos por ano. Ou seja, nesse ponto, a polícia não tinha muito trabalho.

As suspeitas sobre a autoria do crime devem ter circulado por toda a cidade.

—  Não saiu nada nos jornais porque só tínhamos um  — diz Teixeira  . E era um jornal exatamente da corte. Mas as notícias corriam. Se você pensar que é uma cidade com 120 mil habitantes, então o que acontecia num canto da cidade, repercutia em toda a cidade. Eram figuras de proas. Fernando Carneiro Leão era presidente do Banco do Brasil, figura ligada à corte, Dona Carlota Joaquina devia ser muito comentada. Dona Gertrudes, o episódio anterior que ocorrera na rua, quando as duas se encontraram e discutiram asperamente, logo depois há o atentado. Claro, o povo soma um mais um, dois. Quando o povo diz é porque foi, é ou será. 

Mello Moraes cita outra suspeita
para o crime em seu livro
No livro de Mello Moraes, é citada ainda uma outra suspeita: uma mulher identificada como viúva Penna, supostamente outra amante de Fernando. Um pasquim, segundo o historiador, teria publicado os seguintes versos: ‘A Penna feria a Pedra. E sobre a Penna a Pedra.’ Mas Mello Moraes observa que a versão mais aceita envolvia mesmo Carlota.

Mas será que as investigações se prolongaram? Napoleão Bonaparte já estava fora do poder na França. Não representava mais perigo. O rei e a rainha poderiam deixar o Rio.

 — E a coisa não ficou muito tempo assim no ar. Porque isto foi em outubro de 1820. Em fevereiro de 1821, eles decidiram voltar para Portugal e em abril eles retornam. Então foi uma coisa assim de poucos meses. Seis meses que a coisa vigorou aqui  — diz Milton Teixeira. 

O voto de Milton Teixeira

O historiador Milton Teixeira faz uma ressalva antes de dar o seu veredito.

— Uma legião de historiadores destinados a destruir a figura moral de Dona Carlota Joaquina. E isso também passou para o cinema. Então, você tem a imagem da Carlota Joaquina sendo colocada como uma monstra. Enquanto Leopoldina diz que ela era uma simpatia, Debret diz que ela era um amor de pessoa. Eu acredito mais neles porque eles conviveram com essas pessoas.

Milton Teixeira, porém, faz algumas ponderações.

—  Como se fosse pouco, no início do Século 20, existia uma série de historiadores que pegavam fofocas e intrigas e tentavam transformar aquilo em História. Então isso criou uma série de mitos sobre Dona Carlota Joaquina.

Paulo Setúbal, em 1930, menciona
o crime em seu romance histórico
O escritor Paulo Setúbal, por exemplo, lançou o romance histórico “A Marquesa de Santos”, em 1930. Nele há uma passagem em que o próprio Corta-Orelha narra como matou Gertrudes. Mas é uma obra literária. Não é um livro de História, respaldado por documentos.
Apesar de haver muitas dúvidas sobre o comportamento de Carlota, Milton Teixeira, por tudo o que já pesquisou sobre o caso, não tem dúvidas sobre quem mandou matar Gertrudes.

— Eu acredito que Dona Carlota tenha sido a mandante. Ela era uma mulher de espírito forte.

O historiador conclui:

— Hoje o casal, Fernando Carneiro Leão e Gertrudes Angélica estão juntos novamente. Estão enterrados ao lado do altar de Santa Gertrudes, na Igreja do Mosteiro de São Bento, no Centro. Ele morreu uns 15 anos depois dela. Apesar de estarem juntos, acho que depois de mortos foram separados mais uma vez. Ela sobe, mas você… você vai para um lugar mais quente.

O voto de Rezzutti


Para Paulo Rezzutti, é preciso ter cautela com a principal fonte sobre o crime: o livro deixado por Mello Moraes, publicado quase 50 anos após o assassinato.

— O Mello Moraes é aquele caso. Você tem de confiar, desconfiando. Ao mesmo tempo que tem hora que ele acerta assim… Você bater e você consegue checar a informação que você tinha ficado meio assim: será que é. E, outras vezes, ele pega aquele boato e transforma na maior verdade histórica.

Mello Moraes contou com dois testemunhos principais.

— Como a história chegou até ele? Ele fala de pessoas que ouviram dizer que… Então, é meio diz-que-diz-que. E uma das pessoas que afirmava que havia sido a Carlota Joaquina que mandara matar a Gertrudes, a própria vítima, a Marquesa de Maceió, que era viva na época que Mello Moraes escreveu o livro. Então, já passou 50 anos aí de uma coisa que ela pode ter ouvido ou não na infância ou alguém falou pra ela.

A Marquesa de Maceió, Guilhermina Adelaide, estava com 16 anos, na época do crime. Sua irmã, a Viscondessa de São Salvador de Campos, Elisa Leopoldina, apenas 11 anos.
O segundo relato que condena Carlota, explica Rezzutti, não é de ninguém que tenha participado diretamente das investigações.

— Aí tem a questão do processo. Foi um outro desembargador, amigo desse José Albano, que teria contado pro Mello Moraes. Então, a gente tem alguém que ouviu tal coisa, tem a filha da vítima que diz que teria sido a Carlota por ciúmes do… Sabe, assim, é meio… A gente não tem um negócio que afirma, categoricamente, não: ‘foi a Carlota que fez...’

Este é o quadro da Marquesa de Maceió,
feito dois anos após a morte de Gertrudes
Rezzutti não acredita que Gertrudes tenha ofendido Dona Carlota na porta da capela, o que poderia ter sido a motivação final para o crime.

— A gente tem de pensar como pensava aquele povo naquela época. Você destratar o rei, destratar a rainha, tinham leis contra. Imagina lavar a roupa suja, na frente de todo mundo, numa igreja. A Carlota Joaquina, e isso é fato, mandava soldados e mandava negros, açoitando quem se atrevesse a passar na frente da carruagem dela. Imagina se você vai enfrentar uma mulher dessa… Acho que cabe mais como lenda urbana do que realidade nesse caso.

O historiador levanta ainda uma outra hipótese para o assassinato de Gertrudes.

— Se num Rio de Janeiro, com aristocratas e uma classe comercial emergente, que está invadindo o espaço dos aristocratas, dentro do funcionalismo estatal do Reino de Portugal, eu me pergunto se, às 11 horas da noite, podia ter lampião, podia; se fosse lampião, seria abastecido com óleo de baleia, que dava uma luz super mortiça, que não dava para ver nada muito bem. Onze horas da noite, a pessoa descendo de uma carruagem… Será que era para matar a Gertrudes? Será que não era para matar o Fernando Carneiro Leão? Essa é uma dúvida que eu sempre tive e nunca consegui descobrir se poderia ser a mulher ou não.

Diante da falta de provas, Paulo Rezzutti dá o seu veredito.

— Eu acho, na minha opinião, com tudo isso que expus, que, assim, não dá para afirmar com certeza absoluta, que teria sido a Carlota Joaquina a ser a mandante do crime. Faltam provas, infelizmente. Faltam provas até para tirar dela a responsabilidade. Então, acho que é um capítulo da história que cabe indagação. Não dá para condenar a Carlota, pelo menos, por isso.

O voto de Marsilio Cassotti


Ao dar o seu veredito, o historiador argentino Marsilio Cassotti defende Carlota. Seria ela vítima de um complô?

— Se organizou uma campanha para demonstrar que Carlota estava conspirando novamente contra o seu marido, como não se conseguia comprovar que isso era real, para desprestigiá-la lhe acusaram desse crime: de haver mandado matar esta mulher. Na documentação da época, só aparece testemunhos por terceiras vias. Não há testemunhos diretos. Como não há uma prova direta, não posso acusá-la de ser a culpada.

Carlota Joaquina se aproximou do poder que tanto
almejava (quadro de Luis de la Cruz y Rios)
O historiador acredita na inocência de Dona Carlota após ler um documento de 1830, encontrado em, em Bordeaux, na França, escrito por José Presas, um ex-funcionário da monarca.

— Encontrei uma documentação que foi muito pouco utilizada: os testemunhos que o secretário particular de Carlota no Brasil deixou no final de sua vida. Dona Carlota quando chegou ao Brasil, conseguiu um secretário particular, que era um catalão muito inteligente e muito astuto, que acompanhou o seu trabalho por quatro anos, E como ela tinha muita confiança neste personagem lhe introduziu no Palácio Real no Rio de Janeiro. E este homem conta todos os aspectos de Carlota. E isto é uma prova também que Carlota não era esta mulher tão criminosa como diz a lenda, porque este secretário, no final da sua vida, brigou com Carlota. Porque Carlota não lhe pagou a quantia que ele esperava. E escreveu seus testemunhos para prejudicá-la politicamente. No entanto, nunca falou desses crimes, sexuais ou de sangue.

Depois de deixar o Brasil, Carlota Joaquina ainda teria muitas histórias e intrigas pela frente. Chegaria mesmo a se aproximar do poder que tanto almejava.

— Isso coincide com a morte de D. João, e pela primeira vez Dona Carlota alcança o poder em Portugal. Porque, de toda a família Bragança, era ela que estava, neste momento, mais preparada para conseguir o poder.


O filho preferido de Carlota, D. Miguel,
assume o trono (quadro Johann Ender)
— Como não podia reinar, porque em Portugal rainha consorte não pode exercer o poder, ela se alia a Don Miguel, inimigo de Don Pedro, para leva-lo a rei de Portugal. Governa Carlota através de seu filho. E consegue o seu sonho. Porém, um sonho que dura muito pouco porque no ano que seu filho preferido consegue o poder, ela morre...

De acordo com os historiadores, Carlota Joaquina não pode ser condenada como a mandante do assassinato de Gertrudes Pedra Carneiro Leão. Hoje, não há provas para incriminá-la. Mas, se ela tiver sido realmente a mandante e o velho ditado valer - aqui se faz, aqui se paga - a rainha pode ter pago todos os seus pecados nos últimos dias de vida.

— Ela sofria de duas coisas: dos pulmões e, ao mesmo tempo, tinha problemas de ossos, nas articulações, artroses… Então, na enfermidade final, ela estava praticamente imobilizada. Não podiam levantá-la da cama porque lhe produzia tal dores que não podiam trocar sua roupa.  Desagradável do ponto de vista físico, porque a urina, os excrementos, os vômitos não se podia limpar. Então, esta mulher que havia sido, apesar de haver sido uma mulher feia, pouco atrativa, havia sido muito sofisticada na estética e sempre havia cuidado muito do aspecto estético das coisas. E morreu... praticamente, uma morte muito decadente do ponto de vista estético.

A atual Praça José de Alencar, onde ficava a Ponte do Salema, quase 200 anos após o assassinato de Gertrudes
(Foto de Alex Ribeiro)