sábado, 21 de março de 2020

Maior ataque de tubarão da História inspirou filme e, por tabela, o Aquário do Rio



Élcio Braga
Rio, terça-feira, 24 de março de 2020

Em 1975, o filme ‘Tubarão’ deixou plateias atônitas em todo o mundo. As cenas impactaram especialmente um jovem de 16 anos, petrificado na poltrona de um cinema, no Rio de Janeiro. Hoje, ele é o fundador e dirige o maior aquário marinho da América do Sul, o AquaRio.

Esta história é sobre um dos mais extraordinários animais de todos os tempos: o tubarão. Mas é também sobre como um filme pode mexer com a nossa vida.

Na década de 1990, eu trabalhava na movimentada redação do jornal O Dia, no Rio. Lembro de um biólogo marinho que, contra o senso comum da época, costumava chamar a nossa atenção sobre a necessidade de se preservar o tubarão. Era Marcelo Szpilman.

Vinte anos depois, reencontrei Szpilman durante viagem à Trindade e Martim Vaz, o arquipélago do Brasil mais distante da costa.

— Eu dou uma palestra há muitos anos já. Já dei quase 200 palestras no Brasil todo sobre “Mitos e verdades sobre os tubarões”. Exatamente para desmistificar a questão do tubarão, mostrar que ele não é aquela fera assassina que o filme do Spielberg mostra. Nada. Totalmente diferente disso — conta Szpilman, formado em Biologia Marinha pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e hoje diretor-presidente do Aquário do Rio.

A bordo do navio-patrulha Amazonas, da Marinha Brasileira, pude acompanhar duas palestras de Szpilman. Uma delas foi na Praça D'Armas, o cassino dos oficiais.

— Nenhuma cena do filme ('Tubarão'), praticamente nenhuma, é verdadeira. Não existe esse ataque de levar aquela mulher pra lá e pra cá. Não existe tubarão mastigando ninguém. Nada daquilo é verdadeiro. Mas o cara fez tão bem... eu, quando assisti, tinha 14 anos de idade. Fiquei com medo de entrar na piscina. Mas, a partir daí, as pessoas começaram a ter fobia de tubarão — assinala.

Stethacanthus viveu no período Devoniano. Media até 2 metros

OS PRIMEIROS TUBARÕES


Há 400 milhões de anos, a Terra era bem diferente: o período Devoniano. Mas tubarões pré-históricos, peixes de esqueleto cartilaginoso, já cruzavam os mares.

O tubarão moderno surgiria 100 milhões de anos atrás. Mas descobriríamos a espécie mais impressionante ao analisar fósseis de baleias, com marcas de mordidas mortíferas. Que animal seria capaz de abocanhar uma baleia? O megalodonte. A maior mandíbula já reconstituída de um exemplar, estimada por dentes fossilizados, possuía 3 metros e 35 centímetros de largura por 2 metros e 75 de altura.



O megalodonte, tema de filmes de ficção, surgiu há 23 milhões de anos. O tamanho variava entre 12 e 16 metros de comprimento, com 50 toneladas, mas se acredita que possa ter havido exemplares de 20 metros. O resfriamento da Terra contribuiu para a extinção dessa espécie há cerca de 2 milhões e meio de anos.

Mas a preocupação de Marcelo Szpilman é com a imagem dos exemplares modernos. Existe uma variedade enorme de espécies. O tubarão-lanterna anão (Etmopterus perryi) possui no máximo 21 centímetros de comprimento. E temos ainda o dócil tubarão-baleia (Rhincodon typus), que pode passar de 12 metros.

Na palestra do navio-patrulha Amazonas, Szpilman apresenta os tubarões atuais.

— Pra você ver: são 400 espécies. Mais ou menos, 90 no Brasil. Dezoito com registros de ataque não provocado. Destas, 18, 15 têm dois, três, quatro ataques nos últimos 500 anos. Não representa nenhuma ameaça!

Não provocado é quando o ser humano não tem responsabilidade no ataque. Szpilman identifica três espécies que podem atacar o homem sem uma razão aparente.

— Desses três tubarões, tem o tubarão-branco, cabeça-chata e o tubarão-tigre. Nesses ataques, 90% são por erro de identificação visual — observa o biólogo.



— Esse é o cabeça-chata. Cabeça-chata é o tubarão mais perigoso em águas tropicais. Sem dúvida nenhuma. Este é um animal que entra em água doce, vive em água doce quanto tempo ele quiser. Esse animal frequenta água muito próxima, muito rasa. E este é o tubarão que mais está envolvido em ataques no Nordeste. E foi provocado pelo ser humano. O homem, na década de 80, começou a construção do Porto de Suape. Aterrou o mangue todo daquela região. E, mais do que isso, fechou duas bocas de rio, onde a fêmea do cabeça-chata paria o filhote em água doce. E onde ia parir o filhote (depois da construção do porto)? Alimentação diminuiu. Então, ela se deslocou pra Grande Recife — pondera.

O jornalista Felipe Garraffa, da TV Bandeirantes, cobriu uma série de ataques de tubarão na Grande Recife.
Garraffa: mordida experimental
— Não é que o tubarão quer atacar o ser humano. Ali, naquela região do Recife, a água é muito turva, sobretudo durante o verão brasileiro. Então, o tubarão não consegue enxergar. Ele consegue pelo sensor dele identificar que tem uma movimentação na água e ele faz a chamada mordida experimental. Na hora que ele morde, ele sente que é humano. Alguma coisa não atrai ele. Não é de interesse dele. Tem muito osso. Ele faz a mordida experimental e depois sai — diz Garraffa.

Turista paulista de 18 anos morre após ataque de tubarão na praia da Boa viagem, em Recife, em julho de 2013

— Conversei aí com alguém que foi atacado e essa pessoa fez um relato muito interessante da velocidade que acontece tudo isso. Ele estava nadando, numa boa para pegar uma onda ali, não deu para sentir a aproximação e, de repente, a mordida. A mordida, ele apaga e acorda no hospital com o braço esquerdo amputado — completa o jornalista.

MAIOR ATAQUE DA HISTÓRIA


O tubarão pode identificar substâncias diluídas na água em uma parte por milhão. Equivale a sentir uma gota de sangue a 300 metros de distância.

— Antigamente, espero que seja antigamente, os navios costumavam ir jogando lixo, restos de comida e fezes e tudo na água — prossegue Szpilman em sua palestra, no navio Amazonas —. Então, esse tubarão-azul e o tubarão galha-branca oceânico vinham acompanhando os navios. É uma oferta de alimentos. E quando o navio afunda esses animais já estão no local. E, aí, é um problema que houve na Segunda Guerra Mundial. Muitos militares foram comidos. Navios afundaram, e marinheiros comidos por tubarões. Isto é real. Aconteceu. Aí, é uma orgia. Muito sangue na água. Aí, vira um frenesi.

Indianapolis, cruzador da Marinha americana, havia transportado partes da bomba de Hiroshima. Foto: Marinha dos EUA

Segunda Guerra Mundial: depois de deixar em uma base partes da bomba atômica que seria lançada sobre Hiroshima, o cruzador USS Indianápolis, da Marinha americana, navega no Oceano Pacífico.

— Um submarino japonês avista o USS Indianapólis e dispara seis torpedos. Um torpedo acerta a quilha do navio. Outro acerta o meio do navio, quase corta-o ao meio e, a partir daí, foi um processo muito rápido: explosões, o navio pega fogo, aderna e afunda em 12 minutos — conta Marco de Cardoso, jornalista e pesquisador em História Militar.

Marco de Cardoso: 'Sangue atraiu tubarões.' Foto: Élcio Braga

— O navio tinha uma tripulação de 1.196 homens. No impacto desses dois torpedos que atingiram o navio, mais ou menos, 300 morrem na hora. Mais ou menos, também, 900 sobrevivem e se jogam ao mar. Não tinha água, comida, salvaram assim umas poucas latas de ração. Sol, muito quente durante o dia e a noite um gelo. Esses cadáveres ficaram ali boiando, ensanguentados, e isso atraiu um cardume de tubarões.

— Aí, tem o relato de um marinheiro sobrevivente, chamado Loel Dean Cox, Ele deu graças a Deus de os corpos ainda estarem lá. Porque os tubarões comiam os corpos dos companheiros mortos e não atacavam os vivos. Só que chegou uma hora que os cadáveres acabaram.

Loel Dean Cox: sobrevivente. Foto: Marinha dos EUA

— E aí os tubarões começaram a atacar os marinheiros sobreviventes. Dean Cox relata que ele estava boiando na água nos destroços e tinha outro marinheiro ao lado dele. De repente o cara sumiu. Ele só ouviu os gritos.

— Alguns sobreviventes dão contas que tinham tubarões de quase cinco metros.

— Os 500 náufragos que morreram, pelo relato dos sobreviventes, 100 a 150 foram realmente mortos por tubarões e os restantes muitos deles morreram por que? Sem comida, sem água, de insolação, de hipotermia.




Como um dos torpedos atingiu o sistema elétrico do Indianapolis, não houve tempo para emitir pedido de socorro. Nenhuma operação de busca seria montada.
Cena do filme 'Homens de Coragem' (divulgação)

— Loel Dean Cox fala que um companheiro dele entrou num surto psicótico e começou a beber água do mar. E dizendo o seguinte: ‘Essa água tá muito boa, essa água tá muito boa’. E o cara morreu.

No quarto dia após o afundamento, ocorre o que se pode chamar de milagre.

— Os sobreviventes foram achados por acaso. Tinha um bombardeiro em uma missão de patrulha e, aí, ele avista os caras. Foram resgatados com vida, 300 — diz Marco.






Marco de Cardoso faz uma observação sobre os impactos dessa história, que mereceu grande espaço na imprensa americana na época.
Robert Shaw interpreta Comandante Quint (divulgação)

— Um dado interessante é que o filme 'Tubarão' é inspirado na história do USS Indianapolis. Tem um personagem nesse filme, comandante Quint (interpretado por Robert Shaw), era um dos marinheiros que estava lá no USS Indianapolis e foi um dos sobreviventes — diz Marco.

A cena é cult.

— O submarino japonês bateu dois torpedos ao seu lado, chefe. Estávamos voltando da ilha de Tinian para Leyte. Acabamos de entregar a bomba. A bomba de Hiroshima. Mil e cem homens se jogaram na água. O navio afundou em 12 minutos. Só depois de meia hora vi o primeiro tubarão. Um tigre de quatro metros. Sabe como se descobre isso na água, chefe? Você pode perceber olhando da dorsal para a cauda — descreve Quint, para os dois que o acompanham na caça ao tubarão assassino de um balneário nos Estados Unidos.

Gráfico exibido por Szpilman durante a palestra no navio-patrulha Amazonas

Depois dessa você deve estar achando que tubarão é perigoso. Mas há ameaças maiores. Szpilman mostra isso em sua palestra. Mais cartelas são apresentadas aos oficiais, pesquisadores e jornalistas que viajam para a Ilha da Trindade, a 1.160 quilômetros da costa brasileira.

— No mundo todo, em 100 ataques, no máximo dez pessoas morrem por choque hipovolêmico. Não é o tubarão comendo as pessoas. Quando uma pessoa é atacada, recebe uma mordida, ela sangra. Se ela não for retirada, ela vai entrar em choque, a pressão cai, o cérebro apaga e ela se afoga. É um afogamento secundário que, na verdade, é a causa mortis.

Szpilman alerta que outros animais matam muito mais, no entanto, o tubarão é que leva a fama de ‘fera assassina’.

— Leão: temos aí dezenas de pessoas todos os anos sendo comidas por leão. Então: leão, tigre, crocodilo: se você passar do lado dele, e ele estiver com fome, eu te dou 100% de certeza que ele vai te atacar e vai te comer como uma presa qualquer. Não faz diferença nenhuma pra ele. Tubarão, você mergulha com tubarão em água clara, não sabe se ele se alimentou, ele não vai te atacar.



E se você for grande mais seguro vai estar diante de um tubarão.

— Existe uma regra no mar, ao contrário da terra, que o grande sempre vai comer o pequeno. Então, eu tenho 1,84 metro, pé de pato de quase um metro. Eu tenho um tamanho mais ou menos igual ao da maioria dos tubarões. Ou até maior que a maioria dos tubarões. Então ele me respeita. Ele mantém a distância. Tubarão branco a gente usa gaiola por uma questão de proteção mesmo, também, nossa e dele, porque é um animal de seis metros, duas toneladas. Se ele resolver partir pra cima, é foda. Não tem o que fazer. Você é muito menor do que ele. Por isso, não recomendo criança mergulhar com tubarão.

— Aqui: animais domésticos que mais mordem em Nova York. Em uma única cidade americana, você tem 9 mil pessoas mordidas por cachorro, 1.500 pessoas mordidas por seres humanos, 800 por gato e 250 por rato. Mordida por ser humano: o cara vai na emergência sem orelha, sem nariz, sem dedo — observa.

— Na época do ‘Lula Sim – Lula Não’, duas mulheres brigaram, uma arrancou o dedo da outra. Declaração do marido: ‘Ela mordeu como se fosse um pit bull e tirou até o osso." Então, o ser humano é muito mais perigoso.


— Pra você ver, comparativamente, a cidade de Nova York comparando com o número de ataques nos Estados Unidos todo: 12.

— Isso é interessante. Tem empresas nos Estados Unidos que fazem estatísticas que as empresas de seguro usam. Aí tem ataque cardíaco um para 600, arma de fogo, afogamento, acidente com avião, ataque de cachorro um para 11 milhões, ganhar na Mega-Sena é de um para 50 milhões. Ataque de tubarão: um para 95 milhões. Ataque de tubarão: ser atacado, a estatística, é quase o dobro da Mega-Sena acumulada.

O VERDADEIRO PREDADOR


O maior predador do planeta, observa Szpilman, é o próprio homem.

— Pode passar. Falando do problema da pesca predatória e sobrepesca do tubarão. Você tem dois itens: Cápsula de Cartilagem, mas é uma grande bobagem. Dizem que a cápsula é antitumoral, mas não é verdade. Os caras derretem 250 mil tubarões por mês para transformar em cápsula de cartilagem. As pessoas tomam isso achando que está fazendo algum bem.


— Pode passar. Pesca de barbatana é outro item. Sopa de barbatana de tubarão é vista pelo oriental como símbolo de status. Quando havia uma elite consumindo barbatana, não era um problema. Mas o chinês colocou 300 milhões de chineses na classe média e média-alta e o sonho deles é ter sopa de barbatana para servir nas suas festas. É um mercado ilegal. E, como todo mercado ilegal, é altamente lucrativo. Os navios colocam o animal vivo a bordo, cortam as nadadeiras e jogam o animal vivo ao mar.


— Sobrepesca é a pesca feita de forma correta, mas além do limite que a espécie tem de se auto repor na natureza. Tubarão, a reposição dele é baixíssima. Ele chega ao tamanho de reprodução com dez a 15 anos. Taxa de mortalidade é alta.

— Se hoje a gente parasse: ninguém mais pesca tubarão, nós vamos levar, no mínimo, de 15 a 20 anos para repor uma parte desses tubarões.

A cartela (ao lado) mostra a situação crítica dos tubarões.

— Aí, você tem 100 milhões de tubarões mortos todos os anos, declínio acentuado de várias espécies. Quando você vai desmistificar tubarão, você tem de dizer às pessoas qual a importância do tubarão. Para salvar os tubarões ou pelo menos proteger os tubarões. Isso não acontece com tartaruga, baleia e golfinho. Quando você fala: “Vamos salvar as tartarugas”, todo mundo fala: ‘Claro, vamos salvar.”

A fecundação dos tubarões ocorre internamente. Dependendo da espécie, podem ser ovíparos, botam ovos, ovovivíparos, retêm os ovos no oviduto, ou vivíparos, o filhote se desenvolve no útero. Podem viver de 20 a 30 anos. Mas há espécies que podem passar dos 70 anos.

Szpilman destaca a importância dos tubarões no equilíbrio do ecossistema marinho.

Szpilman na Sala D'Armas: defesa dos tubarões
— O tubarão: para você preservar o tubarão, você tem de explicar qual a importância dele para a preservação do ecossistema marinho. Então, vamos lá: manutenção da saúde dos oceanos e controle populacional. Manutenção da saúde significa que ele come animais mortos, em decomposição, e animais moribundos. Ele é um dos grandes carniceiros dos oceanos. E se a gente acabar com os tubarões, vamos ter um problema de saúde no ecossistema.

— Controle populacional, como topo de cadeia, ele mantém equilibrada toda a cadeia abaixo dele. Você tira o topo, você desequilibra a cadeia. Existe um exemplo real, na Austrália. As pessoas acabaram com tubarões de uma baía e nessa baía os tubarões comiam polvos. Os polvos começaram a crescer sem controle. Eles comeram toda a lagosta daquela região. Existia uma indústria da lagosta que quebrou. Centenas de pessoas ficaram desempregadas. Então, um exemplo real do desequilíbrio que se provoca — assinala.

Na parte final da palestra, o biólogo apresenta fotos e vídeos de mergulhos com várias espécies de tubarão, como o cabeça-chata, o tigre e o famoso branco, que aparece no filme de Steven Spielberg.

Szpilman mergulha com o tigre na costa de Moçambique
— Pode passar. Aí, só mostrando que é possível mergulhar com tubarão, tubarão-tigre, cabeça-chata... pode passar, lombo-preto, tubarão-branco.

Todos acompanham a passagem de um enorme exemplar em frente a gaiola que protege Szpilman e seu grupo, no litoral da Ilha de Guadalupe, no Oceano Pacífico, próximo à costa da califórnia mexicana.

Ao terminar a apresentação, o biólogo marinho
Tubarão branco em Guadalupe (foto: Axel Blikstad)
pergunta se restou alguma dúvida. Um militar, na gozação, faz uma pergunta:

— Tubarão morde?

— Morde nada. É mentira.

E todos aplaudem o biólogo, hoje diretor-presidente do maior aquário marinho da América do Sul, o Aqua Rio, na Zona Portuária.





O Aquário do Rio: em três anos, 3,7 milhões de visitantes (foto: Élcio Braga)

Szpilman e o tubarão mangona do Aquário do Rio (foto: Severino Silva)

O biólogo no túnel do Aqua Rio: o ponto alto da visita (foto: Severino Silva)