quarta-feira, 25 de novembro de 2020

O vampiro de Čelákovice: uma história arqueológica real

A descoberta do esqueleto de um suposto vampiro, enterrado de uma forma que

não pudesse voltar das trevas, segundo a crença, fez uma pequena cidade na República Tcheca ser falada no mundo inteiro.  

Um brasileiro é chamado para desvendar este mistério de até 900 anos. O 3D designer Cícero Moraes vai reconstituir, com base no crânio desse esqueleto, a verdadeira face da criatura. O resultado será surpreendente. 

Esta é uma História real de Vampiro. Explicando melhor: a história é real, o vampiro não. Você vai descobrir agora por quê.  

O vampiro de Čelákovice 

Estamos chegando à Estação de Čelákovice. A pequena cidade, cortada pelo Rio Elba, possui pouco mais de 11 mil habitantes. Fica a 30 quilômetros de Praga, a badalada capital da República Tcheca. 

A vida é calma, apesar de Čelákovice ter a fama de abrigar o maior cemitério de vampiros da Europa Central, encontrado em escavações em 1966. 

Čelákovice
Čelákovice, na República Tcheca
(Foto: Portal da Cidade) 
Cinquenta anos depois da descoberta, arqueólogos decidem revelar como seria um desses supostos vampiros que teria assombrado a região. É aí que procuram o 3D designer brasileiro Cícero Moraes, famoso por suas reconstituições faciais de personagens históricos. 

Cícero está em Sinop, em Mato Grosso, onde mora, quando abre uma estranha mensagem. 

— Em novembro de 2016, eu recebi um e-mail de solicitação de uma reconstituição facial forense. Esse e-mail era de um grupo tcheco e eu achei curioso, quando comecei a ler a descrição desse crânio. O pessoal explicou que esse crânio fazia parte do acervo de um museu e esse crânio era do conhecido Vampiro de Čelákovice. 

O convite é do Museu Municipal local. 

— Eles iam fazer uma mostra falando dessa situação dos vampiros, como Čelákovice se tornou uma cidade dos vampiros. Depois até se tornou um local de turismo. As pessoas iam para saber um pouco mais sobre essa história. E por conta dessa notoriedade queriam saber como era o rosto desse indivíduo — diz Cicero.    

O designer aceita o desafio, o mais inusitado entre as dezenas que coleciona em sua carreira. Cicero obteve destaque na imprensa internacional ao reconstituir personagens históricos. Para o novo trabalho, Cicero receberá a reprodução digital em 3D de um crânio. 

— O ano é 1966 e próximo à cidade de Čelákovice um fazendeiro estava fazendo uma reforma, num dos prédios da sua fazenda, um galpão. No momento que ele estava fazendo um buraco, provavelmente para colocar um pilar ou alguma coisa nesse sentido, ele se deparou com o que parecia ser um crânio humano. Como ele identificou que era um crânio humano, ele se assustou porque julgava que poderia ser o crânio fruto de um assassinato. 

— Rapidamente, ele entrou em contato com a polícia local, preocupado com a situação. A polícia se deslocou até lá. E assim que eles fizeram a averiguação dos restos mortais, rapidamente eles viram que não se tratava de um assassinato recente. 


Agora, começa a parte mais interessante da história. 

— Eles entraram em contato com um grupo de arqueólogos. Os arqueólogos se deslocaram até o local. Começaram a fazer escavações e descobriram que não se tratava apenas de um corpo. Mas de 14 corpos. E esses corpos tinham características, a forma como foram enterrados, fugia a forma tradicional que o pessoal enterrava os mortos naquela época. Depois eles viram que eram bem antigos mesmo. Não era daquela época — conta. 

Sepultura 2 (Foto: Museu de Čelákovice)
As pesquisas iniciais apontaram que o cemitério pode ter sido criado entre os séculos XI e XII. 

O arqueólogo Jaroslav Špaček, que dirigiu o Museu de Čelákovice, concluiu que os esqueletos haviam sido alvos de medidas antivampíricas. 

Com mãos amarradas e a cabeça voltada para baixo, de acordo com a crença, por exemplo, os mortos não encontrariam o caminho de volta ao mundo dos vivos. 

— E junto com os corpos tinham algumas fivelas, indumentárias e a forma que eles foram mortos lembrava muito aqueles rituais vampiristas que o pessoal enterrava de cabeça para baixo, cortava a cabeça do indivíduo para separar do corpo, as mãos pareciam que estavam atadas — explica. 

— E aquilo suscitou um burburinho, principalmente dos populares que poderia se tratar de vampiros. E a cidade ficou com fama de a cidade dos vampiros. 

Segundo a lenda, revenant ou aquele que regressa do mundo dos mortos precisa beber sangue humano para se fortalecer. A crença, com muitas variações, acompanha a humanidade há séculos e em várias culturas. Mas o vampiro que ganhou vida na literatura e no cinema se inspirou em lenda dos Balcãs e da Europa Oriental.  

Sepultura 5 (Foto: Museu de Čelákovice)
O primeiro registro da palavra vampiro aparece no início do Século 18. 

Após vencer o Império Otomano, a Áustria havia anexado grandes extensões da Sérvia ao seu território. Nas terras dos povos eslavos, os austríacos ouviram muitos relatos sobre mortos-vivos que sugam sangue.   

Em 1725, o relatório do Provedor Imperial Frombald, um funcionário da administração austríaca, menciona pela primeira vez a palavra ‘vampiro’. Ele havia visitado a vila de Kisilova, possivelmente a atual Kisiljevo, na Sérvia. 

No documento, relata o caso do camponês Petar Blagojević (Petar blagoevit), que teria saído da sepultura dez semanas após a morte e, em um período de apenas oito dias, causado a morte de nove moradores da região. Especula-se hoje que alguma doença desconhecida possa ter provocado as mortes e gerado a confusão. 

Relatório militar informava que
cadáver tinha sangue fresco

O fato é que a população em pânico exigiu a exumação do corpo de Blagojevic.  

O funcionário descreve o momento em que se abriu o caixão e se cravou a estaca no peito do cadáver. Escreve o provedor imperial:  

"O rosto, as mãos e os pés, e todo o corpo estavam tão bem constituídos, que não poderiam ter estado mais completos em sua vida. Com espanto, vi um pouco de sangue fresco em sua boca, que – de acordo com os relatos – havia sido sugado das pessoas mortas por ele... assim, ao ser perfurado, um monte de sangue, completamente fresco, também jorrou de seus ouvidos e boca, e aconteceram outras manifestações que não descrevo por respeito." 

A história, publicada em um jornal austríaco, provocou histeria. A lenda dos vampiros se propagou rápido pela Europa. 

O rosto do suposto vampiro de Čelákovice elaborado por Cicero Moraes
com base no crânio encontrado em 1966 em cemitério incomum na Europa Central

O gênero ganhou melhor forma com o lançamento do romance ‘O Vampiro’, em 1819, do médico e escritor inglês John William Polidori. A criatura é descrita como carismática e sofisticada. A imagem é ampliada com o romance ‘Drácula’, de Bram Stocker, lançado em 1897.  

O romance 'O vampiro',
o primeiro de 1819

— Quando recebi a solicitação de reconstituição e vi que era um vampiro a primeira coisa que eu lembrei foi o filme do ‘Drácula’, de 1992. Um filme muito bom. Sempre assisto — conta Cicero. 

A imagem digitalizada do crânio é enviada a Cicero, mas sem os detalhes antropológicos de sexo, idade e ancestralidade. 

O designer faz as marcações e enxerta volume de acordo com cada região da cabeça. 

No trabalho, Cícero conta com a ajuda de outro brasileiro, o especialista em odontologia forense Marcos Paulo Salles Machado. A análise permite saber mais sobre o esqueleto. Pela arcada, descobre-se que é um europeu, entre 30 e 40 anos. 

O suposto vampiro sai do mundo dos mortos e começa a ganhar vida em um trabalho gráfico. Tipo de cabelo, cor da pele e dos olhos são meras suposições. Baseiam-se nos padrões comuns para os habitantes daquela época e localidade. 

O que Cícero não contava era com a reação das pessoas à aparência do suposto vampiro. 

— Quando a gente foi fazendo a reconstrução foi surgindo uma aparência garbosa. Era um indivíduo bonito. Tanto que assim que a gente finalizou e apresentamos à equipe, foi um dos primeiros comentários: ‘É uma pessoa bonita.’ E quando foi apresentado também houve uma comoção em torno da beleza do indivíduo — surpreende-se Cicero.  

O 3D designer Cicero Moraes reconstruiu
face do suposto vampiro (Foto: Martin Dlouhý)
Uma curiosidade. Segundo o designer, reconstituições de pessoas belas são mais aceitas.  

— O que é natural. Quando a gente faz uma reconstrução facial, isso eu sempre digo, quando você faz uma reconstrução e a pessoa fica agradável aos olhos, fica bonita, todo mundo fala: ‘Olha, realmente, era desse jeito que o indivíduo era.’ Quando você faz uma reconstrução que o indivíduo não fica muito bonito, pessoal tende a não aceitar muito, fala: “olha, acho que não era bem assim.’ Principalmente, se gosta: ‘Acho que não era bem assim.’ 

— E no caso do vampiro, como ele fez sucesso, a ponto de surgirem algumas brincadeiras assim que algumas pessoas queriam ser mordidas por ele por conta da beleza. 

— Entregamos a reconstrução para o museu, depois da aprovação.  Essa reconstrução se transformou numa série de matérias tanto de jornais, revistas, sites de internet e foi distribuída em 15 ou 16 idiomas. 

A partir daí a história começaria a tomar um novo rumo.   

—  É claro que não se tratava de um vampiro de verdade. Depois, eles viram que os ossos eram de excluídos sociais — observa Cicero. 


Sepultura 3 (Foto: Museu de Čelákovice)
Estudo apresentado pela antropóloga Miroslava Blajerová, em 1971, revelou que as vítimas tinham crânios mais curtos do que era comum em outras sepulturas eslavas na virada dos séculos 10 e 11. Amantes do mistério chegaram a especular que seria uma raça diferente de vampiros. 

Na verdade, a antropóloga sugeria que as características eram de ocupantes da região entre os séculos 13 e 15, bem mais recente, por tanto. 

Neste estudo, publicado em 2017, com a participação da arqueóloga tcheca Pavlína Mašková, são apresentados argumentos significativos para mudar o rumo da história. 

Eram 11 sepulturas com 14 esqueletos. Alguns estavam de bruços ou de lado e não tinham nem mesmo uma orientação comum, como é usual em cemitérios. A posição das mãos de alguns indivíduos indicava que poderiam estar amarradas. Três esqueletos estavam com o crânio fora da posição normal. 

Em 1966, quando foram descobertos, túmulos atípicos como estes eram geralmente associados às chamadas medidas antivampíricas. 

Crânio de mulher do Século XV ou XVI:
tijolo na boca, suspeita de ação antivampírica
De acordo com as fontes medievais da Europa Central, apenas enterrando uma estaca e queimando o corpo seria um meio eficaz contra um revenant ou mortos-vivos. Nesse período, não se falava ainda em vampiros como nos séculos 18 e 19, época em que passou a se separar a cabeça, amarrar as mãos ou prender o corpo com pedras. Isto indicaria que os esqueletos descobertos em 1966, por serem mais antigos, não haviam sofrido estas medidas antivampíricas. 

Em 2016, com o método do radiocarbono 14C, análises das amostras das sepulturas 6 e 7 dataram o achado nos séculos 13 e 14. 

Os arqueólogos passaram a acreditar que as cabeças se separaram do tronco de forma natural. 

— E talvez pela forma que eram enterrados, sem muito cuidado, claro que o corpo ia se decompor de forma diferente e isso deve ter causado a situação de a cabeça se separar do corpo, as mãos ficarem separadas — assinala o 3D designer. 

Estudo da arqueóloga tcheca Pavlína Mašková, publicado em 2017, aponta que
os esqueletos de Čelákovice seriam, na verdade, de excluídos sociais

De acordo com as fontes escritas da época, sabe-se que pessoas excomungadas, não batizadas e de outra fé, suicidas e criminosos foram excluídos do espaço do cemitério paroquial da cidade.  

— Eram pessoas que não eram enterradas no mesmo local dos outros habitantes da cidade. Pessoas que talvez tivessem alguma doença que assustava as demais pessoas do local. Então, eles eram enterrados em outra parte da cidade, bem distante do cemitério municipal. 

Exposição 'Existiram vampiros em Čelákovice?',
em 2016, marcou os 50 anos de pesquisas 
Além disso, cinco fivelas de ferro encontradas no local indicavam que os corpos estavam vestidos, reforçando a ideia das execuções. Na época, as pessoas costumavam ser enterradas apenas com uma túnica.  

Somente em um caso não foi possível estimar o sexo por causa da preservação insuficiente dos ossos. Todos os demais eram com certeza homens, a maioria jovens. O que também reforça a hipótese de alguns serem condenados. 

O rosto do suposto vampiro foi a principal atração da exposição “Existiram vampiros em Čelákovice?” O evento no museu local abordou os 50 anos de pesquisas envolvendo aqueles enterros incomuns. 

O arqueólogo Jaroslav Špaček reafirma a
tese de intervenções antivampíricas
—  Um fato interessante é que quando foi inaugurada a mostra, os idealizadores da mostra foram vestidos a caráter, mais ou menos com as indumentárias da época, contrataram um grupo de música da época, se apresentaram lá, serviam alimentos que eram servidos no Século 12, e foi um trabalho magnífico — observa Cicero Moraes.

Apesar dos estudos mais recentes, o arqueólogo Jaroslav Špaček, que dirigiu o Museu de Čelákovice, acredita que o cemitério, de fato, foi alvo de intervenções antivampíricas. Aos 77 anos, ele enviou e-mail para esta reportagem contestando a nova versão de que os esqueletos pertenceriam a excluídos sociais e condenados.

Para Jaroslav Špaček, mortos
sofreram ações antivampíricas

— O fato de que os mortos tenham sido excluídos sociais não contradiz a hipótese de também terem sofrido intervenções antivampiro, o que declarei com base em estudos etnológicos e arqueológicos disponíveis na época. No material esquelético que eu pessoalmente descobri e recuperei, não havia um único sinal de que as pessoas foram condenadas ou executadas, como estão tentando interpretar alguns estudos recentes — assinalou.

Um outro ponto que o arqueólogo contesta é a datação do achado para um período mais recente.

— Tenho comentários sérios sobre a datação atual baseada no uso do radiocarbono, também no que diz respeito aos métodos de preservação. Portanto, não vejo razão para datar a descoberta para um período mais jovem do que o início da Idade Média — diz.

Apesar dos novos estudos, a fama de Čelákovice parece inabalável.

— Čelákovice ainda mantém a reputação de ser o maior cemitério com intervenções antivampiros na Europa Central — observa o arqueólogo tcheco.