quinta-feira, 16 de março de 2023

O americano do Velho Oeste que se declarou príncipe de uma ilha brasileira


ÉLCIO BRAGA

Um americano do Velho Oeste avista uma ilha brasileira desabitada, a 1.140 quilômetros da costa. Em 1895, ele se autoproclama príncipe e anuncia sua mulher, uma milionária de Nova York, como princesa. Ele cria o Principado de Trindade, manchete em vários jornais. Lança selos, brasão e até uma bandeira. O novo reino é reconhecido por várias nações, mas essa história marcada por romances, escândalos e reviravoltas, terá um final desconcertante: a Inglaterra tomará a ilha e o Brasil vai entrar nesta disputa com a faca nos dentes. 

"O difícil não é perder o que se tem, mas perder o que na verdade nunca se teve." 

James Harden-Hickey: Príncipe no Brasil

O PRÍNCIPE DE TRINDADE 

— É um americano. O nome dele, um nome pomposo: James Aloysius Harden-Hickey. Era filho de um americano de origem irlandesa e a mãe dele era francesa — diz o professor e pesquisador de História Militar Marco de Cardoso, do Centro de Estudos e Pesquisas de História Militar do Exército (CEPHiMEx).

Quando James nasce, em 8 de dezembro de 1854, São Francisco ainda vive a Corrida do Ouro, no Velho Oeste americano.   

— O pai dele criou um patrimônio considerável. Explorava minas de ouro no Velho Oeste — conta o pesquisador João Carlos Moreira.

Entre 1848 e 1855 o sonho dourado atrai 300 mil pessoas à Califórnia. São Francisco, antes uma vila de 15 mil habitantes, passa a registrar altos índices de criminalidade.  

A mãe europeia percebe os riscos de criar o menino em lugar tão inóspito. 

— E a família, ainda no século XIX, logo depois do nascimento dele, emigra para a França — observa Cardoso. 

Riscos no Velho Oeste: James vai para Paris 

A França é um império sob o domínio de Napoleão III, sobrinho de Napoleão Bonaparte.  

— E o James, naquela época, ainda jovem, já ficou fascinado com a corte francesa. Imagina o que não passou na cabeça do adolescente vendo aquela pompa, aquelas honrarias todas, aquele luxo, aquela criadagem enorme, toda vida de uma corte — acrescenta Moreira.  

Os pais matriculam o menino em colégio jesuíta, em Namur, na Bélgica. Mais tarde, o jovem faz Direito, na Universidade de Leipzig, na Alemanha. 

Ao retornar à França, James decide ingressar no exército francês. Aos 19 anos, entra na Escola Militar Especial de Saint-Cyr. Em 1875, conclui o curso com méritos.  

— E era bom aluno, se formou com notas altas, mas um acidente... levou uma patada de um cavalo que o deixou fisicamente debilitado, e ele encerrou a carreira militar — diz Moreira.  

Fora do Exército, James vai lutar por suas ideias por outros caminhos. 

— Ele se casa com uma condessa francesa, dentro desta busca ávida para se tornar um nobre — conta Cardoso. 

Napoleão III: James admira a monarquia

O casamento é com a Condessa de Saint-Pery, com quem terá um casal de filhos. No campo profissional, suas atenções se voltam para a política. 

— E esse sujeito, James, ele se torna um ferrenho defensor da monarquia, apesar de ter nascido na pátria do liberalismo republicano que são os Estados Unidos — acentua Cardoso.  

Em 1883, James perde o pai e herda um pequeno patrimônio. Com isso, ganha tranquilidade para se dedicar a traduções anglo-francesas e a escrever romances monarquistas. Napoleão III havia sido deposto em 1870 e a Terceira República estava a pleno vigor. 

Entre 1876 e 1880, com o pseudônimo de Saint-Patrice, James publica onze romances, todos monarquistas e antidemocráticos, como "Cartas de um ianque", "Um amor do mundo" e "Maravilhosas aventuras de Nabucodonosor”. 

O escritor Irving Wallace avaliou a obra deixada por James Harden-Hickey. Em “The Square Pegs: alguns americanos que ousaram ser diferentes”, de 1958, o escritor classifica os enredos de James como ingênuos, marcados por personagens estereotipados e linguagem plana. 

— E ele começa a se envolver em propagação do regime monárquico, atacar a República. Cria um jornal defendendo a monarquia — diz Cardoso. 

Le Triboulet: editado por James

Em 10 de novembro de 1878, James funda e edita o satírico Le Triboulet. O nome é uma referência a um famoso bobo da corte de Luís XII. A ilustração de capa mostra o bobo batendo em Marianne, o símbolo da República. Em dois anos, o jornal se torna diário. A tiragem alcança 25 mil exemplares. 

Neste período, os jornais seguiam o espírito de Villemessant, que havia comprado o ‘Le Figaro’ em 1854: "Se uma história não causa um duelo ou um processo, não é boa". 

A premissa traz fama a James. Ele é processado 42 vezes por difamação e participa de ao menos 12 duelos. 

— Ele era um exímio espadachim. Então, ele se metia em duelos para defender as ideias, a ideologia dele — relata Cardoso. 

James é capaz de arrancar, com o florete, os botões de um colete. 

É uma fase de festas. James oferece grandes recepções e gasta boa parte de sua herança. Mas ele também obtém uma conquista.   

— Ele apoiava a Igreja também. Ele ganhou o título de barão do Sacro Império Romano-Germânico — conta Moreira. 

A Ilha da Trindade e não "de Trindade": grafia oficial

As coisas começam a desandar em 1887. Com o fim do dinheiro dos monarquistas, o Le Triboulet, sem mais verba, fecha as portas. Outra notícia ruim: seu irmão mais velho, que voltara para a América, morre na ruína. O casamento com a condessa também chega ao fim. 

No meio deste inferno astral, James reflete sobre a essência da vida. A busca o leva a uma viagem de dois anos pelo mundo que começa em Londres.   

— Era um aventureiro. Ele não parava quieto num determinado lugar. Embarcou num navio, o Astoria, um navio inglês — diz Moreira.  

— A vida dele é meio rocambolesca. Isso, a viagem à Índia foi em 1887. Conhece lá as religiões indianas. Começa a pesquisar sobre isso — avalia Cardoso. 

— Passou um ano na Índia. Aprendeu filosofia sânscrita e budismo — completa Moreira.

Para Cardoso, a vida de James "era meio rocambolesca"

No Atlântico, antes de cruzar o Cabo de Hornos rumo ao Pacífico, o Astoria se depara com um cenário que vai mudar completamente a vida de James. A Ilha da Trindade surge longe no horizonte. 

— Aí, ele vislumbra lá no meio do oceano uma ilha desabitada naquela época, terra de ninguém. Aí, os sonhos fervilharam na cabeça dele — conta Moreira. 

Não se sabe o motivo que leva o capitão Jackson, do Astoria, a se aproximar daquele ponto perdido no Atlântico Sul, a 1140 quilômetros da costa do Brasil. Especula-se que o mau tempo o levou até ali. Talvez, tenha sido a necessidade de reabastecer os barris de água ou, quem sabe, queria melhorar as refeições com carne de tartaruga, animal abundante na ilha.  

Na primeira visão da ilha, três picos se destacam, o mais alto deles se ergue a 620 metros. Daí a justificativa para o nome do território descoberto em 1501 pelo navegador João da Nova. 

— Ela foi descoberta pelos portugueses tanto que o nome é Trindade, mesmo em inglês é Trinidad. Mas ela ficou desocupada porque realmente não tem porto natural, não tem condições de plantio, não tem nada ali — conta o historiador Adler Homero, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

De acordo com o jornalista e escritor americano Richard Harding Davis, expoente do jornalismo no início do século 20, James desembarca em um bote e caminha pela ilha. Os únicos animais são pássaros, tartarugas e caranguejos terrestres, além de cabras deixadas pelo astrônomo inglês Edmond Halley, em 1700.   

Harding Davis escreveu sobre James

Célebre por ser o primeiro correspondente de guerra dos Estados Unidos, Richard escreveu “Real Soldiers of Fortune”, na tradução livre “Verdadeiros soldados da fortuna”, lançado em 1906, que traz a biografia de James e de alguns outros americanos polêmicos. 

A porta de entrada na ilha é a Praia dos Portugueses, onde ocorreram as primeiras tentativas de colonização. O local abriga hoje o Posto Oceanográfico da Marinha Brasileira.  

O barão se encanta com o que vê. Chama especial atenção este paredão. Na base, escavada pela violência das ondas, uma caverna faz a ligação entre os dois lados da ilha. Neste local, diz a lenda, piratas no início do Século 19 teriam enterrado um valioso tesouro inca. 

Este mesmo paredão, sabemos hoje, é o que restou do último cone vulcânico existente em todo o território brasileiro. A última erupção ocorreu há cerca de 250 mil anos. 

Trindade emergiu no Atlântico após uma série de erupções vulcânicas que começou há mais de 3 milhões de anos. O território inclui ainda a pequena ilha de Martim Vaz e alguns rochedos, a 48 quilômetros de distância a leste. A área total abrange 10,4 quilômetros quadrados. Trindade tem cerca de oito quilômetros de comprimento e quase 5 quilômetros na parte mais larga. 

O barão decide reivindicar a posse da ilha, que por ser terra nullius, terra de ninguém, está disponível a seu ver, com base em leis internacionais. 

— Ele se apaixona pela Ilha de Trindade. E resolve que a Ilha de Trindade vai ser dele. Ele tinha essa aspiração de ser um monarca — diz Cardoso. 

O retorno a Paris ocorre em 1890. James Harden-Hickey está revigorado, cheio de sonhos. 

Neste momento, James vai conhecer um novo amor. Ele tinha fama de atrair mulheres bonitas. E dessa vez tirou a sorte grande. 

O sogro magnata: John Flagler 

— Em 1891, ele se casa com a filha de um magnata americano. E, aí, ele começa a ter mais dinheiro para os devaneios dele. O sogro dando uma certa ajuda — conta Cardoso. 

Anna Harper Flagler é filha de John Haldane Flagler, ex-sócio de Andrew Carnegie no ramo siderúrgico e um bem-sucedido empresário na produção de tubos de aço. Não temos nenhuma imagem real de Anna. O casamento acontece em 17 de março de 1891, na Igreja Presbiteriana da Quinta Avenida, em Nova York, sob as bênçãos do renomado reverendo John Hall. Nos Estados Unidos, James colocará os seus planos em ação. 

— E começa um processo de tentar registrar essa Ilha de Trindade como uma possessão dele — afirma Cardoso. — Aí, ele chega nos Estados Unidos e começa um movimento em prol disso. 

O barão vai morar com a mulher na casa do sogro em Nova York. A criação de um novo reino absorverá grande parte do seu tempo. 

Um dos primeiros passos é nomear o Conde de La Boissière, seu amigo dos tempos de Paris, como Secretário de Estado. A chancelaria fica na 217 West 36th Street em Nova York.  

Esta era a chancelaria de Trindade em Nova York

— Em 1894, ele se declara James I, o príncipe da Ilha de Trindade. E é uma coisa muito louca, só falando assim, porque ele cria uma bandeira — diz Cardoso.

O pavilhão traz um triângulo amarelo, alusivo à Santíssima Trindade, envolvido em uma área vermelha. 

— Ele cria brasão. Ele cria títulos de nobreza, ordenamento de como seria o governo da ilha — acrescenta Cardoso. 

Em setembro de 1893, o barão notifica oficialmente a vários países sobre a posse da Ilha da Trindade.  

Em 5 de novembro de 1893, James consegue plantar uma notícia no New York Tribune sobre seus planos para tornar Trindade um país independente. A filha de Flagler aparece como uma princesa americana nas reportagens. 

— Um principado... um americano dono de um principado. Isso dava ibope — avalia Moreira. 

Em janeiro de 1894, o barão reitera a possessão e informa que, a partir de então, a terra passa a ser conhecida como 'Principado de Trindade'. Segundo James, muitas representações diplomáticas reconhecem o novo reino. A monarquia será uma ditadura militar. 

— Ele mandou confeccionar uma coroa pra si. Na cabeça dele, o quadro já estava formado, mas a ilha ainda não era dele — pondera Moreira. 

A bandeira do Principado de Trindade

O monarca define que os oficiais de sua corte devem usar bigode “à la Louis Napoleon”. O uniforme da guarda palaciana se inspira no do regimento francês Zouave, usado no século 19, no Norte da África, e adotado também pela 5ª Infantaria Voluntária de Nova York. O idioma oficial do reino será o francês. 

Na chancelaria, James elabora protocolo sobre a colonização. A ideia é empregar trabalhadores chineses na construção da cidade. As lendas de tesouros escondidos na ilha se tornam atrativos para os colonos. Acena-se com o compromisso de dividir parte da riqueza que vier a ser descoberta.

O brasão do novo reino

 

James emite títulos de 200 dólares e oferece, a quem comprar dez unidades, o direito a uma passagem de ida e, de volta, caso se arrependa um ano depois. Os primeiros voluntários farão parte da aristocracia. O monarca prevê também a distribuição de títulos de nobreza.  

Estes são os selos postais emitidos pelo imaginário Principado, e que se tornarão valiosos mais tarde. 

O monarca cria um sistema de ordens e condecorações. Quer incentivar e premiar os que colaborarem com o novo principado. 

— Ele sai nessa toada, tentando o apoio do governo americano para que esse sonho dele se concretizasse, inclusive ele manda uma carta para o secretário de Estado dos Estados Unidos, falando desse desejo dele, pedindo um apoio estratégico do governo americano para tomar posse da ilha. Pelo que se sabe o governo não deu muita trela para ele — explica Cardoso. 

O sogro John Flagler mostrou simpatia com as aspirações do genro. Em entrevista, o magnata comenta sobre o novo reino. 

Selos do principado: hoje raros e caros

“Meu genro é um homem muito determinado”, disse Flagler; “ele executará qualquer esquema em que esteja interessado. Se ele tivesse me consultado sobre isso, eu ficaria feliz em ajudá-lo com dinheiro ou conselhos. Meu genro é um homem extremamente culto, refinado e bem-educado.” 

Flagler comenta até os dois anos em que James esteve em sua residência: “Enquanto ele estava hospedado em minha casa, ele passava quase todo o tempo na biblioteca traduzindo um livro indiano sobre o budismo. Minha filha não tem ambição de ser uma

Réplica da Ordem de Trindade

rainha ou qualquer outra coisa além do que ela é — uma garota americana. Mas meu genro pretende levar adiante esse projeto de Trindade e... ele o fará.” 

— Mas ele continuou com essa ideia de ser o príncipe da Ilha de Trindade. Chegou até a ter algum apoio de certos setores da opinião pública. Setores de formadores de opinião nos Estados Unidos. O The New York Times, por exemplo, publicou matérias sobre ele. Matérias meio que amistosas a essa ideia do James, mas o fato é que a coisa não foi pra frente — relata Cardoso.    

Mas James I recebe um duro golpe. 

— Em 1895, a Grã-Bretanha, o maior império da época, ocupa a Ilha de Trindade, querendo fazer uma estação telegráfica lá — conta Cardoso.

— Não foi uma invasão. Porque, do ponto de vista dos ingleses, aquilo não era de ninguém. Não tinha ninguém lá. Se não é de ninguém, pode ser meu. O objetivo dele era dar apoio ao funcionamento de cabos submarinos. Já havia um cabo submarino ligando o Brasil a Europa. Eles tinham de sofrer manutenção constante e ali seria um local adequado para dar esse apoio — explica Adler Homero. 

A notícia é um baque para o barão. Suas reivindicações sobre as terras abandonadas haviam sido completamente ignoradas. Em outras épocas, a Inglaterra já havia ocupado o arquipélago.  

Ruínas de construção do século XIX em Trindade

— Em 1783, os ingleses ocuparam aquilo. Fez até um forte, Forte da Rainha. Portugal começou gestões diplomáticas para que os ingleses se retirassem. Os ingleses saíram dali. Até porque ali não servia para nada — observa Homero. 

— Aí, Portugal ocupou. Manteve o forte guarnecido até 1796. Aí, o governador do Rio de Janeiro pediu a Portugal para tirar a tropa de lá porque é um lugar infernal. Ia um navio de suprimento de seis em seis meses. Imagine você ficar seis meses sem nenhuma comunicação qualquer — completa o historiador do Iphan. 

— Depois que a Inglaterra pela segunda vez tomou posse da ilha, com o objetivo de criar uma estação telegráfica, esse fato foi noticiado — assinala o capitão de fragata Luís Felipe Silva Santos, coordenador do Programa  de Pesquisas Científicas na Ilha da Trindade

A ocupação explode como uma bomba no Rio de Janeiro, então capital da jovem República do Brasil.  

— Os moradores do Rio de Janeiro, revoltados com a invasão da ilha pela Inglaterra, Café Londres foi depredado, atacado pela população carioca no caso — diz Moreira.

O violento protesto popular pressiona a administração do presidente brasileiro Prudente de Moraes. 

— O governo brasileiro reage, dizendo que Trindade é território brasileiro. Isso vai parar numa corte internacional — afirma Cardoso. 

Arrasado, James prepara a contraofensiva. Não desiste da ilha. 

Marco de posse da ilha colocado pelo governo brasileiro

Durante a disputa entre Inglaterra e Brasil, James trabalha por fora. Busca apoio na diplomacia americana para reivindicar os seus direitos sobre o principado. Ele instrui seu chanceler a enviar uma carta ao secretário de Estado dos EUA, Richard Olney, pedindo a mediação na disputa com a Inglaterra e o Brasil. O problema é que o secretário torna a carta pública como algo bizarro. Como nada de importante acontece naquele agosto, a notícia ganha espaço nos jornais. O príncipe vira motivo de chacota. 

— Colocou a carroça na frente dos bois.  A imprensa viu que não ia sair principado naquela ilha. Duas nações reivindicando a posse do objeto do sonho dele... começaram a não dar mais crédito a ele. As notícias foram reduzindo e ele foi perdendo, vamos dizer assim, a popularidade dele — diz Moreira. 

O jornalista Richard Harding Davis relata o clima na chancelaria do Principado de Trindade, localizada em bairro modesto de Nova York, após a publicação das notícias desfavoráveis. Na soleira da porta, crianças de um cortiço brincam enquanto na rua um vendedor ambulante oferece couves murchas a um grupo de moradoras. 

Vista da vila do Posto Oceanográfico (Foto: Luciano Cajaíba)

O conde De la Boissière recebe o jornalista com desconfiança, mas o trata gentilmente. Richard se surpreende como o conde se refere a James: “Ele me falou com franqueza e carinho sobre o príncipe James”, observa. “Na verdade, nunca conheci nenhum homem que conhecesse bem Harden-Hickey que não falasse dele com lealdade agressiva.” 

Um único jornal demonstra certa empatia com James Harden-Hickey e o conde de La Boissière: o The New York Times. 

O repórter Henri Pene du Bois vê a história por outro ângulo. Ele diz ao editor-chefe Henry N. Cary: “Não há nada de engraçado nessa história. É patético. Ambos os homens são sérios. Eles estão convencidos de que estão sendo roubados de seus direitos. A única falha deles é que eles têm imaginação e que o resto de nós não tem. Foi assim que me impressionou, e é assim que a história deveria ser escrita.” O editor responde: “Escreva assim.” 

Praia dos Portugueses (foto: Luciano Cajaíba)

Em retribuição, o barão concede aos dois jornalistas a Ordem de Trindade, no grau Chevalier. 

— James condecorou jornalistas para tentar virar o quadro um pouquinho, o jogo, para que ele tentasse voltar a ter mais credibilidade, mas as coisas não andaram muito bem para o lado dele, não — assinala Moreira. 

Apesar das zombarias, James I tenta de todas as formas restabelecer a reivindicação de posse, mas recebe apenas o apoio da família e de alguns amigos. 

Uma ideia ousada, porém, lhe vem à cabeça. Ele vai fazer tudo para colocá-la em prática. 

— Só que o nosso James ficou fulo da vida com essa história da Grã-Bretanha e aí ele resolve... qual foi a decisão dele? Invadir a Grã-Bretanha. E aí precisa montar um exército — comenta Cardoso. 

— James tenta lá (com o sogro dele, John Flagler) conseguir recursos para um aparato militar bélico para invadir a Inglaterra a partir da costa da Irlanda. Vê que ideia — espanta-se Moreira. 

— E aí ele vai fazer o que? Pá, pá, pá, vai bater na porta do sogro. Vai pedir ajuda ao sogro. Pedir ao sogro que vendesse alguma fazenda dele, alguma empresa, para poder invadir a Inglaterra. O sogro que não era bobo nem nada não entrou nessa — acrescenta Cardoso.    

Belos cenário no Morro da Cratera (Foto Élcio Braga)

A frustração toma conta de James quando os ingleses deixam a ilha em 1896 e os brasileiros assumem o controle. O Brasil havia alegado ser herdeiro de Portugal, o descobridor daquele território. 

— O Brasil por meios diplomáticos, solicitou a posse da ilha, e com o apoio de Portugal conseguiu, diplomaticamente, que a Inglaterra reconhecesse a soberania brasileira sobre a ilha — relata Santos. 

— A Grã-Bretanha tira o time de campo, digamos assim — diz Cardoso.

Havia muitos interesses em jogo. A Inglaterra queria manter boas relações com o Brasil para obter

Ilhotas próximo à Praia do Príncipe (Foto Élcio Braga)

tarifas alfandegarias semelhantes às obtidas pelos Estados Unidos, que aumentavam sua área de influência na região. Estas questões facilitaram um acordo favorável ao Brasil. 

— Os ingleses ocuparam pouco tempo. Houve gestões diplomáticas brasileiras para que eles saíssem e eles saíram. A Marinha foi lá, fez um monumento, com uma bandeira, dizendo ‘isso aqui é brasileiro’ e foi embora — esclarece Homero. 

O território retomado pelo Brasil teria pouco uso até a montagem de uma base permanente. 

— Trindade foi um presídio para presos políticos. Era o lugar ideal. Não tinha como escapar. E era castigo mesmo. Os presos inclusive, neste caso, alguns ficavam em tendas, outros ficavam em barracões. Só muito mais tarde é que a Marinha veio a ter uma presença constante, uma base naval e uma estação científica no local — relata Homero. 

— Em 1957, efetivamente, foi criado o Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade e, desde então, a ilha vem sendo guarnecida por cerca de 30 militares da Marinha do Brasil que se revezam a cada quatro meses. Então, já temos mais de 60 anos de ocupação da ilha, ininterruptamente — complementa Santos.


Apesar de vista com ironia por grande parte da opinião pública, o estabelecimento de um país independente na costa brasileira poderia ter gerado perda relevante para o Brasil. Hoje o país pode explorar economicamente uma área de 200 milhas ao redor do arquipélago de Trindade e Martim Vaz. 

Lugar marcante: o túnel que liga os dois lados da ilha

— A gente pode ver isso como uma coisa extremamente séria. Extremamente pensada. Não só o devaneio de uma pessoa que quer ser rei, quer ser príncipe. Mas a gente pode ver isso pelo viés da geopolítica também. Será que um americano, dono de uma ilha, aqui perto do Brasil, uma ilha estratégica, no Atlântico Sul, não seria interessante para o governo americano? Tanto que ele teve apoio de certos setores da opinião pública. Formadores de opinião nos Estados Unidos apoiaram a ideia dele. O governo americano nunca se manifestou oficialmente, mas a gente não sabe — avalia Cardoso.   

No meio do imbróglio, James Harden Hickey recebe oferta inusitada: liderar uma revolta para restabelecer a monarquia no trono do Havaí. A rainha Liliuokalani havia sido destituída e presa, em 1893, e uma república instalada, com apoio de tropas americanas e militantes europeus. É também uma empreitada arriscada. Mas não sabemos qual foi a resposta de James.  

Além da perda de seu reino, James enfrenta outro problema: a falta de dinheiro. E ele nem pode recorrer ao sogro milionário. 

O Principado de Trindade: o reino dos sonhos de James

O jornalista Richard Harding Davis acredita que James tenha rompido com Flagler por não ter acesso a herança de sua mulher. A primeira mulher de Flagler, Annie, a mãe de Anna, havia morrido e deixado uma fortuna, mas Flagler era o responsável pelos bens. Para ele, James se mostra despreparado para tocar os negócios.  

O sogro já havia sido contra o casamento da filha. Desconfiava à época que o barão estivesse interessado mais no dinheiro da família. Por isso, inicialmente, James manteve a mulher com seus próprios recursos.   

Uma das mais belas vistas no Morro da Cratera (Élcio Braga)

O curioso é que Flagler parecia ter apreço pelo barão, conforme escreveu Richard Harding Davis: “Ele sempre parece ter falado de seu genro com tolerância, e muitas vezes com admiração, como alguém falaria de uma criança inteligente e rebelde. Mas Harden-Hickey optou por considerar Flagler seu inimigo, um homem de negócios sórdido que não conseguia entender os sentimentos e aspirações de um gênio e de um cavalheiro.” 

Mesmo assim, o barão chega a comprar uma fazenda no México e a investir em minas na Califórnia com dinheiro cedido pelo sogro. Os recursos, porém, vieram indiretamente, por intermédio de sua mulher ou mesmo do Conde de La Boissière, também amigo de Flagler. 

Aos 43 anos, James se sente no fundo do poço. A opinião pública o vê como uma piada, um tolo. Está desmoralizado, brigado com o sogro, afastado da mulher e suas finanças estão combalidas. 

O jornalista Richard Harding Davis, que conhece James, observa: “Você não pode julgar Harden-Hickey como julgaria um contemporâneo. Ele deveria ter vivido nos dias de ‘Os Três Mosqueteiros”. Ele era absolutamente honesto e absolutamente sem senso de humor. Para ele, pagar impostos, pagar as contas da mercearia, depender da proteção de um policial, era intolerável. Ele vivia em um mundo de sua própria imaginação.” 

— Esse tipo de personagem, este tipo de aventureiro da linhagem do James, era comum. Então, no século 19, essa categoria de aventureiro se cunhou esse termo ‘Flibusteiro do século 19”. Um outro grande exemplo: William Walker também era um americano que se declarou dono da Nicarágua. Invadiu a Nicarágua com exército de mercenários e tomou posse da Nicarágua. Claro, foi combatido. Houve uma rebelião contra ele e ele acabou sendo morto em Honduras — relata Cardoso.  

Trindade fica a 1140 km da costa (Google Earth)

Desiludido com a perda de Trindade, James precisa vender parte dos bens para manter a família. Vê pouco a mulher. Anna vai para a Califórnia preparar a nova casa da família. Ela é acompanhada pelos dois filhos do primeiro casamento de James.  

James está no México, mas o último interessado em comprar sua fazenda desiste. O barão se vê em um beco sem saída, mas se recusa a procurar a ajuda do sogro. 

— Acabou que esse sonho dele ser o príncipe da Ilha de Trindade não evoluiu. Aí, ele entrou em uma depressão por não ter conseguido o que ele queria de ser esse, esse príncipe de uma ilha do Atlântico Sul — frisa Cardoso. 

O barão segue para El Paso, no Texas. Lá se hospeda no Pierson Hotel, em 2 de fevereiro de 1898. Na noite do dia 9, por volta das 7 e meia, James se recolhe aos seus aposentos. 

— Ele se isolou num quarto de hotel. Veio aquela depressão. E, aí, ele tomou uma overdose de morfina— diz João Carlos Moreira. 

O navio-patrulha Amazonas na Praia dos Portugueses (LC)

No dia seguinte, por volta de meio-dia, funcionários do hotel arrombam a porta. James está morto sobre a cama. Ele havia deixado para a mulher uma carta presa a uma cadeira. Em um trecho, diz: “Terei provado o cálice da amargura até a última gota, mas não reclamo. Adeus. Prefiro ser um cavalheiro morto a um canalha vivo como seu pai.” 

— O interessante é que encontraram... ao lado do corpo dele estava a coroa que ele mandou fazer do Principado da Ilha de Trindade. E assim terminou o devaneio desse americano em ser o príncipe de uma ilha brasileira — conclui Marco de Cardoso. 

Lettering: 

A pedido da mãe, James I, Príncipe de Trindade e Barão do Sacro Império Romano-Germânico, aos 43 anos, foi enterrado no Mausoléu da Família Hickey, em São Francisco. 

Sua mulher, Anna Flagler Harden-Hickey, morreu aos 82 anos, em 4 de fevereiro de 1950, em um sanatório, em Connecticut, nos Estados Unidos. 

James deixou um decreto real assinado e selado, mas em branco, com o seu chanceler De la Boissière, nomeado regente perpétuo.

O ato permitiria a proclamação de um sucessor para o trono, como o próprio filho de James, do primeiro casamento, e a abertura de uma nova disputa pela posse de Trindade. Mas nada disso aconteceu.

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