quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Como atravessar o mar mais perigoso do mundo


Estamos começando uma jornada que para muitos não teve volta. Esta é a segunda vez que passo no Mar de Drake.
Onda toma conta da proa do Ary Rongel

Neste vídeo vou contar como o navio da Marinha brasileira Maximiano da Fonseca passa pela exuberante Terra do Fogo e se prepara para atravessar, sem sustos, o mar mais perigoso do mundo.
Esta região é famosa por mudanças bruscas no tempo. Causa de muitos naufrágios. Mas nem sequer temos um número confiável sobre afundamentos no Drake. Algumas fontes informam que seriam mais de 800 embarcações perdidas. Embora sejam dados pouco confiáveis, ajudam a consolidar a imagem de lugar tenebroso.
A Antártica banhada pelos principais oceanos do planeta

De volta ao Mar de Drake

Primeiro, vamos ver onde fica o Drake no globo terrestre. A Antártica está bem aqui, no Polo Sul, banhada pelos principais oceanos do planeta. Na porção mais estreita, temos a Terra do Fogo, na América do Sul, de um lado, e a Península Antártica, do outro. A este trecho chamamos de Passagem ou Mar de Drake.
O volume colossal das correntes antárticas se comprime para passar neste estreito de 480 milhas náuticas, em torno de 900 quilômetros. A correnteza aqui é 600 vezes a do Rio Amazonas. A profundidade chega a 4,8 mil metros.
 
Punta Arenas: ponto de partida
Vamos agora ao ponto de partida desta jornada, a cidade de Punta Arenas, bem na extremidade sul do Chile. É banhada pelo Estreito de Magalhães, a passagem entre o Atlântico e o Pacífico descoberta em 1520 pelo navegador português Fernão de Magalhães, a serviço da Coroa Espanhola.





Primeiro dia

6 de janeiro

O embarque é no Navio Polar Maximiano da Fonseca, da Marinha Brasileira.
— O destino é a Estação Antártica. A nossa previsão é chegarmos no dia 10, de manhã, previsão, pode chegar antes, pode chegar depois, como falei, depende das condições do mar e de vento no Drake, que é um dos mares mais revoltos do mundo — diz o oficial Palmeira.
Fernão de Magalhães
Magalhães descobriu o estreito entre os oceanos 

O trajeto é longo.
— São 300 milhas de Punta Arenas até o Cabo de Hornos e 480 milhas até a Antártica — informa o capitão de mar e guerra Cândido Marques, comandante do Navio Polar Almirante Maximiano.
A velocidade padrão será de 10 nós, quase 20 quilômetros por hora.
No início da nossa viagem, vamos contornar a Terra do Fogo. O arquipélago, dividido entre Chile e Argentina, é separado da América do Sul pelo Estreito de Magalhães.
Apesar de ser um lugar congelante, recebeu esse nome, é o que se conta, quando o navegador português Fernão de Magalhães passou por aqui, em 1520, na primeira viagem de circum-navegação na Terra. Sua frota avistou fogueiras acesas por nativos, nas margens dos canais. Com a nebulosidade, as chamas pareciam flutuar. Daí vem o nome: Terra do Fogo.

— Estou aqui no Estreito de Magalhães. Apesar do mal tempo, a navegação é bem tranquila. As águas são calmas. Olha como é bonito isso aqui. Mesmo com o mal tempo, a gente percebe assim uma beleza incrível. A gente consegue ver algumas montanhas com neve mesmo no verão — conta o jornalista Élcio Braga.
Esta imagem que estamos vendo é provavelmente a mesma vista por Fernão de Magalhães e sua tripulação há mais de 500 anos.
— Aqui já são dez horas da noite. E olha só: bem claro ainda o dia — observa Élcio Braga, que mostra partes do navio. — Essa aqui é a parte de trás do navio. O pessoal disse que quando passa pelo Drake a água vem aqui em cima. Lava esse convés todo.




Segundo dia

7 de janeiro

O Maximiano alcança o outro lado da América do Sul.
— Passamos perto do Pacífico também. A gente não foi pro Pacífico. Estamos pegando um outro caminho pro Atlântico. É uma área que a gente pode perceber a noite, que o navio mexeu um pouquinho mais — observa o comandante Cândido Marques.
Esse percurso foi quase o mesmo feito pelo navegador inglês Francis Drake, em 1577, na segunda viagem de volta ao mundo. Só que ao alcançar o Pacífico, uma tempestade o forçou a descer mais ao sul e a descobrir uma passagem entre os dois oceanos, batizada com o seu nome. O curioso é que ele mesmo não chegou a cruzar este mar turbulento.
— Estamos navegando até chegar ao Passo do Drake. Nosso passo atual... nós estamos aqui... Do O’Bryen. Nós vamos passar, logo após esse passo, nós vamos entrar no Canal Ballenero — conta o suboficial Rodrigo Alves, auxiliar de navegação.
Nesses trechos mais estreitos o navio corre maior risco de atingir uma pedra ou encalhar.
— Aqui nós estamos passando pelos canais austrais, os canais chilenos, que vão nos levar até a entrada do Drake. Neste trecho estamos vendo muitos pedaços de gelo flutuando aqui na água. Apesar das águas serem tranquilas, o grande problema desse trecho é que é muito estreito em algumas partes, o que dificulta a navegação. A Marinha do Brasil está até contando com dois militares chilenos que estão aqui, orientando a navegação — conta Élcio Braga.
Como neste período estamos no verão no Hemisfério Sul, muitos blocos se desprendem das montanhas. Cachoeiras nascem pelo trajeto.
Apesar da tranquilidade da navegação, o momento é de tensão no Maximiano. As notícias sobre o Drake não são boas.
— O que a gente pode observar isso no dia 8, aquele centro de baixa aqui, vai gerar os ventos, gerando onda. A gente pode observar ao longo do Drake ondas na perspectiva entre 3 a 4 metros, com possíveis locais entre 4 e 5, surgindo mais pro meio no Atlântico Sul, entre 5 e 6 metros — alerta o capitão-de-corveta Victor Pimentel, chefe de operações do navio polar Almirante Maximiano.
Se o navio seguir em frente, terá um Drake mais agitado.
Marques decide esperar em Puerto Williams

— Caso a decisão do comando seja seguir direto, nós teríamos ondas oscilando ali no Drake, segundo os modelos, entre 3 e 4 metros e meio. E, caso o comandante tome outra decisão, a gente esperaria outra janela meteorológica. E tomaríamos, conforme acompanhando os modelos, caso o centro de alta acelere ou desacelere, pra gente ter um prognóstico de quanto seria essa altura de onda — acrescentou Pimentel.
O comandante avalia.
— A intenção, se for possível, é a gente fundear em Puerto Williams e ficar cerca de 24 horas, esperando a janela melhorar um pouco — decide Cândido Marques.
Prevendo ainda assim um mar agitado, o comandante recomenda cuidados a bordo.

— Preparação do navio para o mau tempo. Sempre que entrar no Drake, é importante que os senhores deixem os equipamentos sempre guardados nas maletas para que a gente não tenha nenhum prejuízo material — orienta Cândido Marques.

Entramos no Canal de Beagle. Passamos em frente a Ushuaia, do lado argentino. É uma cidade bem bacana, que oferece diversos pacotes turísticos, inclusive para a Antártica por 5 mil dólares. 
Para aguardar a melhora do tempo no Drake, o Maximiano ancora por 30 horas em frente a Porto Williams, no Chile. Não vamos desembarcar, mas aproveito para fazer algumas imagens de longe da última cidade antes da Antártica. Os moradores reivindicam o título de cidade do fim do mundo.
Puerto Williams, no Chile, reivindica o título de cidade do fim do mundo



Terceiro dia

8 de janeiro

Com o desenvolvimento da meteorologia, ficou muito mais fácil navegar no Drake. Basta ter paciência e tempo. A viagem fica bem mais segura.
— O Centro de Hidrografia e a Diretoria de Hidrografia e Navegação fazem uma previsão meteorológica especial pra essa região, assim como os outros países. A gente consulta também outros bancos de dados — explica Cândido Marques.
Um navio de turismo se aventura no Drake
Enquanto o Maximiano aguarda amelhora no tempo, um navio de turismo decide enfrentar o Drake mais mexido. Como a programação é apertada, um dia parado significa menos tempo na Antártica, o que deixaria os turistas contrariados.
No entanto, enfrentar o Drake turbulento é certeza de fortes emoções. Foi assim em 2018. Uma grande onda danificou comandos essenciais à navegação de um navio de turismo, que precisou ser socorrido.


Os preparativos para entrar no Drake continuam no Maximiano.
— Os cuidados basicamente é de não deixar materiais volantes, desde um simples conjunto de pratos e copos, mas principalmente de materiais mais pesados, que podem, com o balanço do navio, se deslocar e quebrar outros, o que a gente chama de apeação do material — diz Cândido Marques.
Para o caso de termos de abandonar o navio, recebemos uma roupa especial. É o mesmo equipamento que usaremos na Antártica.

Quarto dia

9 de janeiro

Depois de deixar Puerto Williams para trás, o Maximiano entra no Atlântico.
— Alvorada. Bom dia, Tio Max. Hoje é quinta-feira, 9 de janeiro de 2020 — anuncia o locutor no sistema de som do navio —. Nonagésimo terceiro dia de comissão. O navio encontra-se navegando nas proximidades da Ilha Picton, no rumo 137, com velocidade de 10 nós.

O cardápio do dia também é anunciado pelo sistema sonoro:
— Hoje, na nossa fábrica de gostosuras, terá no café da manhã mingau e presunto, acompanhado pelo CLPM. No almoço, salada com peixe frito à escabeche, arroz, arroz integral e feijão, com suco. Sobremesa: mousse de morango. No jantar, um delicioso frango grelhado com arroz, sopa, com suco. Sobremesa: compota de pêssego. Na ceia, pão doce com suco.
Ao entrar no Atlântico, o Maximiano se prepara para encarar o Drake.
— Estamos indo em direção ao Cabo de Hornos, que é a parte mais sul. É onde o Atlântico se junta com o Pacífico em mar aberto, que fica de frente para o Estreito de Drake — conta o comandante Cândido Marques.

Os dois militares da Marinha do Chile que ajudaram o Maximiano a atravessar os canais austrais vão desembarcar. Uma lancha surge para resgatá-los no mar turbulento.
Pelos alto-falantes, o alerta é sobre os riscos neste trecho da viagem.
— Almirante Maximiliano, por questões de segurança, está proibido o trânsito nos conveses externos. Está proibido o trânsito em conveses externos.
Ao passar pelo Cabo de Hornos, na extremidade da América do Sul, rumamos para a Antártica. Apesar da longa espera em Porto Williams, ainda pegamos a rebarba da tempestade. A tripulação sente os efeitos. Há um mal-estar mesmo para os mais acostumados.
Pimentel: meteorologia reduziu riscos

— A gente já pegou fenômenos conhecidos como Drake Lake, que é o Drake praticamente parado, como se fosse um lago mesmo. E já pegamos o Drake um pouco mais mexido entre esses 3 e 4 metros de onda. É só desconfortável. Algumas pessoas sentem enjoos, mas nada que venha a comprometer — assinala Victor Pimentel, o chefe de operações do navio.
— Numa época mais atrás não existia monitoramento meteorológico tão contínuo como existe hoje. Então, o que acontecia, os navios iam passar pelo Drake como o Drake estivesse.  A gente tem um monitoramento tanto geograficamente quanto temporalmente muito mais preciso e temos internet a bordo, temos meios de fazer esse monitoramento... a partir daí, a gente consegue copilar uma predição bem exata do que a gente vai enfrentar — conclui o capitão-de-corveta.

Quando vem pela frente um mar em fúria, como diz o provérbio, é que surgem os bons marinheiros.
— Existem diversas manobras pela literatura pra gente poder enfrentar um mar mais bravio de forma segura. Os navios tinham de adotar isso e, caso o navio não fosse hábil o suficiente, poderia vir a ocorrer algum acidente. Hoje em dia isso é cada vez mais raro - observa o capitão-de-corveta.

Quinto dia

10 de janeiro
Rodrigo Tecchio: técnicas para mar revolto 


— Agora a gente se encontra bem na metade do Estreito de Drake. A gente tem ainda uns 500 quilômetros para chegar ainda à Estação Antártica brasileira. E a meteorologia tem se comportado conforme a previsão. As ondas baixaram. Agora estamos encontrando ondas de 2 a 3 metros. Só que em virtude de elas estarem entrando pelo través barra bochecha de bombordo do navio acaba ainda mantendo esse certo desconforto. O navio continua jogando um pouquinho. Ela está pegando ao lado do navio — acentua o capitão tenente Rodrigo Tecchio, encarregado técnico da Divisão de Hidrossonografia e de Navegação.
A preocupação são as ondas na lateral do navio, o que compromete a estabilidade.


— O ângulo de emborcamento do navio, isso de projeto, são 45 graus. O máximo que o navio chegaria, com toda a carga, considerando ele com a carga máxima, seria 45 graus de ângulo. Acima disso a possibilidade de o navio virar, emborcar, é muito grande. Por precaução, a gente faz justamente isso: a gente evita ondas muito grandes de través para que a gente nunca alcance ângulo de emborcamento — assinala Rodrigo Tecchio. — Para você ter ideia, o nosso maior jogo que a gente pegou ontem foi em torno de 18 graus. É possível observar aqui pelo inclinômetro. Foram 18 graus de jogo que o navio pegou ontem durante o início do Drake.
Com ondas muito maiores, o navio teria de alterar o rumo.
— Toda vez que a gente passa por uma situação em que as ondas estão muito grandes, o melhor comportamento que o navio tem é pegando elas bem de frente. Isso faz com que esse jogo lateral deixe de existir e acabe acontecendo somente o jogo no sentido longitudinal do navio. Isso faz com que o navio se comporte melhor e cause menos desconforto para toda a tripulação e garante assim também que o material não venha a ser comprometido em virtude do jogo — finaliza o capitão-tenente.


Podemos avaliar as condições do mar pela Escala de Douglas, criada em 1917 pelo vice-almirante inglês Henry Percy Douglas. Baseia-se na altura das ondas. Assim, o grau zero é o mar sem ondulações. Com marolas de 10 centímetros é o grau 1. Com ondas de dois metros e meio a quatro metros, como a que pegamos nesta viagem, estamos no Mar 5. Se o comandante tivesse decidido enfrentar a tempestade, teríamos pego possivelmente o Mar 7. Na primeira vez que passei pelo Drake, foi o mar que enfrentei. Foram ondas com mais de sete metros. O topo da escala é o Mar 9, com ondas superiores a 14 metros. Aí é mar em fúria.

Sexto dia

11 de janeiro

Geleiras de Nelson, na chegada à Antártica

Lembra do ditado que depois da tempestade vem a bonança, olha ela aí.
 — Depois de cinco dias de viagem, partindo da cidade de Punta Arenas, o navio Maximiano chega à Antártica. Nós estamos aqui passando pelas geleiras de Nelson. Já é possível ver baleia passar, pássaros — conta Élcio Braga.




O Maximiano na Baía do Almirantado
— Aqui, enfim, já sentimos o frio intenso da Antártica. O vento é muito intenso e não é possível ficar filmando muito tempo aqui fora porque tem de tirar as luvas para filmar e a mão congela. Tem de entrar, aquecer, coloca as mãos debaixo dos braços, que aquecem mais rápido. A temperatura aqui fora, já nas proximidades da Ilha Rei George, é em torno de 3 graus Celsius, mas a sensação térmica é em torno de -5 graus Celsius devido ao vento. Estamos no verão antártico, numa temperatura um pouco mais amena. É um frio intenso, mas, para as condições locais, muita gente chama esse lugar de Antártica Tropical. Um nome que tem muito a ver se comparado com as regiões mais frias do continente antártico, o lugar mais frio do planeta, onde já se registrou -89,2 °C (Estação Vostok), em 21 de julho de 1983.


Logo, o Maximiano se aproxima da Estação Comandante Ferraz, na Baía do Almirantado, na Ilha Rei George, que fica no arquipélago das Shetland do Sul.
— Esta é a estação Comandante Ferraz, reinaugurada em 15 de janeiro de 2020. No inverno, todo esse mar congela e a estação fica isolada por meses até o descongelamento no verão — explica o jornalista.

O alívio de deixar o Drake para trás não dá para esconder. A chegada à Antártica é celebrada com uma pequena confraternização no Maximiano, ao som de "Infinita Highway", sucesso dos Engenheiros do Havaii.