domingo, 25 de abril de 2021

Os primeiros humanos no Brasil: mistérios, animais gigantes e pinturas sobre sexo

Um povo viveu na Serra da Capivara, no Piauí, milênios antes de o Brasil ser descoberto. Não sabemos exatamente quem eram estes humanos. Mas eles deixaram para a posteridade um pouco sobre suas vidas. 

— Já conseguimos datar pinturas que têm a mesma idade daquelas da África e da Europa: 26/27 mil anos. Você tem cenas de caça, de sexo, de dança, cerimoniais, várias coisas — diz a arqueóloga Niède Guidon 

É aqui que começa a nossa história mais antiga. 



NOSSA PRIMEIRA HISTÓRIA 

Vamos refletir sobre a instigante tese que defende que um povo já vivia na região do Piauí há mais de 40 mil anos, contrariando as principais teorias de ocupação da América. E ainda: uma viagem em 7 milhões de anos de nossa evolução e como a genética nos ajuda a encontrar respostas sobre os primeiros povos no continente. 

— Tenho 10% de origem indígena americana, o que pra mim foi uma surpresa. E ainda por cima surgiu na história, um neandertal, com uma participação de 2,5% no meu DNA — surpreende-se Patricia Melo e Souza, gestora de previdência.  

Quatro dos maiores especialistas no tema nos ajudarão a compreender melhor a última grande jornada de ocupação do planeta. Por hora, vamos em frente. 


Primeiro passo

Nosso primeiro passo é ir para São Raimundo Nonato. Como o aeroporto local é limitado, o mais recomendado é desembarcar em Petrolina e — pé na estrada — por 300 quilômetros. A cidade fica a 530 quilômetros de Teresina, a capital do Piauí, e possui pouco mais de 34 mil habitantes. Abriga a sede do Parque Nacional da Serra da Capivara, o grande tesouro da arqueologia no Brasil.  

Há pinturas rupestres com 12 mil anos comprovados e artefatos que, segundo alguns arqueólogos, podem ter sido elaborados há mais de 40 mil anos. Mas para entender esta história, é melhor agora darmos alguns passos para trás no tempo. Milhares, aliás. 

A origem do homem  - Parte 1

Os primatas são mamíferos que se
adaptaram em viver em árvores
Quando os dinossauros ainda estavam sobre a Terra, há pouco mais de 65 milhões de anos, surgiram os primeiros primatas, mamíferos que se adaptaram a viver em árvores. Ao longo de milhares de anos, grupos se isolaram, sofreram mutações e adquiriram novas características, formando espécies. 

A ordem dos primatas é composta hoje por macacos, símios, lêmures e humanos. Totalizam ao menos 180 espécies. Em comum, possuem cérebro bem desenvolvido, duas mamas, habilidade para ficar sobre os pés e olhos dispostos lateralmente. 

As linhagens dos humanos, dos gorilas e dos chimpanzés possuíam um ancestral comum há pouco mais de 8 milhões de anos. Mais de um milhão de anos depois, nós e os chimpanzés ainda compartilhávamos um ancestral comum. Chimpanzés e bonobos são nossos parentes mais próximos. Compartilhamos 98,7% do DNA com eles. 

— A nossa linhagem evolutiva a gente chama de linhagem dos hominíneos (Nota: Neves observa que não se usa mais 'hominídeos'). Os primeiros vestígios dos hominíneos têm cerca de 7 milhões de anos. O que define a nossa linhagem evolutiva é a bipedia. E eles, apesar de serem bípedes, ainda tinham várias características do corpo que os tornavam excelentes trepadores de árvores — conta o bioantropólogo Walter Neves.


Evolução humana
O que difere a linhagem dos humanos é a bipedia

Seria o caso de Lucy, uma Australopitecus afarensis que viveu há 3 milhões e 200 mil anos na região hoje ocupada pela Etiópia. O nome é uma referência a uma música dos Beatles que tocava no momento da descoberta do fóssil, em 1974. 

— A bipedia estritamente terrestre vai aparecer com o início do gênero homo por volta aí de 2 milhões de anos. E isso também coincide com a primeira saída dos hominíneos da África. A partir de 2 milhões de anos, o gênero homo vai se expandir por todo o velho mundo e ele chega lá no Cáucaso por volta de 1,8 milhão de anos. Chega em Java por volta de 1,6 milhão de anos. Mais tarde, vai sair da África um outro personagem, chamado Homo heidelbergensis. Esse sim: ele se expande para o mundo inteiro, inclusive para a Europa — explica Neves, que se tornou conhecido como 'Pai de Luzia', uma referência às suas pesquisas sobre o esqueleto humano mais antigo encontrado no Brasil.

O Homo heidelbergensis deu origem a neandertais
e humanos (Ilust. Cicero Moraes)


O Homo heidelbergensis, que viveu entre 700 mil e 200 mil anos atrás, foi a primeira espécie a caçar animais de grande porte rotineiramente e a construir abrigos simples, de madeira e rocha. Controlava o fogo e usava lanças de madeira. 

— E aí é muito interessante porque os Homo heidelbergensis que foram para a Europa vão dar origem lá aos neandertais. E, aqueles heidelbergensis que ficaram na África vão dar origem ao Homo sapiens. Então, o Homo sapiens aparece na África por volta de 200 mil anos. É a partir de 50 mil anos que nós expandimos por todo o planeta. E na medida que o Homo sapiens se expande para todos os outros continentes ele vai substituindo os hominíneos arcaicos que existiam nesses locais. O exemplo mais contundente é o dos neandertais. O homem moderno chega à Europa por volta de 35 mil anos. E os últimos, os neandertais mais tardios, têm cerca de 29 mil anos — observa o bioantropólogo. 


Humanos possuíram um ancestral comum com gorilas e chimpanzés








— Em apenas 5 / 6 mil anos, o Homo sapiens conseguiu substituir completamente os neandertais na Europa. Ele chega no Sudeste Asiático por volta de 45 mil anos e rapidamente ele se expande para o Sul e chega aí na Austrália, não muito tempo depois, por volta de 40 mil anos. Essa mesma população também vai se expandir em direção ao Norte e chegar na América aí por volta de uns 14 mil anos — completa Walter Neves.


A travessia do Estreito de Bering foi um
obstáculo a ocupação das Américas

A conquista - Parte 2 

Alcançar a América era um grande desafio. 

— A única via terrestre possível é pelo Norte. Há também possibilidade de travessias atlânticas ou pacíficas. Mas essas são provavelmente muito tardias na história humana, porque a travessia oceânica precisa de equipamento sofisticado. Não tem como — observa o arqueólogo Fabio Parenti, doutor em Arqueologia Pré-Histórica na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, de Paris, e coordenador do programa de pós-graduação em Arqueologia da Universidade do Paraná.

Muitos humanos primitivos pararam nas praias da Sibéria, no ponto mais extremo da Ásia. À frente, os 83 quilômetros do Estreito de Bering, um mar gelado e pouco amistoso. Do outro lado, o Alasca, na América do Norte. Os antigos buscavam novas terras, onde poderiam ter mais suprimentos. Era a jornada por um futuro melhor. 


No lugar por onde os primitivos passaram existem
duas ilhas. A russa está um dia a frente da americana
Curiosamente, na atualidade, podemos ver o futuro no Estreito de Bering. Existe a Pequena Diomedes, com pouco mais de 100 moradores, que pertence aos Estados Unidos. É também chamada de Ilha do Ontem. De lá, se olharmos para a Grande Diomedes, a ilha que pertence à Rússia, a apenas 3 quilômetros e 800 metros, veremos o dia seguinte. A Linha imaginária Internacional de Data, que divide o dia no mundo, passa exatamente entre as duas ilhas. 

Se na ilha menor for a manhã de sábado, por exemplo, na ilha maior já será a manhã de domingo. No inverno, é possível caminhar sobre o mar congelado entre as ilhas.    

Nossos antepassados precisaram de uma ajuda a mais do clima para realizar a mais longa jornada de ocupação do planeta. Durante a última Era do Gelo, muita água estava congelada. Os oceanos ficaram em torno de 100 metros mais rasos. Com isso, uma faixa de terra, a Beríngia, surgiu no Estreito de Bering, que possui profundidade entre 30 e 50 metros. 


Primitivos podem ter passado pela Beríngia, e por
um corredor livre de gelo ou pelo litoral









— No final do Pleistoceno, aí por volta de 12 – 11 mil anos atrás, o nível do mar estava baixo. Estava bem mais baixo do que o atual e isso expunha uma ponte de terra lá no Estreito de Bering. De maneira que alguns autores acreditam que o homem foi expandindo. Expandiu para esta ponte de terra e depois expandiu em direção à América — diz o bioantropólogo Walter Neves. 

Ao chegar ao Alasca, o homem primitivo enfrentou outro desafio: vencer as geleiras e alcançar as terras férteis mais ao sul. 

— Mas alguns autores acham que mesmo que tenha existido esta ponte de terra entre a Sibéria e o Alasca, que se o homem tivesse feito isso, ele não conseguiria descer porque todo o Alasca e grande parte da região Norte dos Estados Unidos estava coberta de gelo — prossegue Neves. 

Bioantropólogo Walter Neves

Pesquisadores descobriram que houve um corredor entre as geleiras, o que pode ter facilitado a jornada para o sul. Neste caminho, porém, arqueólogos não encontraram fósseis de plantas e animais durante esse período. Isto indica que, no longo trajeto, os humanos não teriam como obter alimentos. 

— Então, tem ganhado bastante adeptos a ideia de que não foi por esse corredor livre de gelo, foi pelo litoral de Bering. E depois entra no litoral do Pacífico e desce. E aí vai, digamos, interiorizando tanto na América do Norte, na medida que as geleiras foram retrocedendo, quanto nas Américas Central e do Sul — explica o bioantropólogo.  

Nos anos 1920 e 1930, arqueólogos americanos descobriram próximo à cidade de Clóvis, no Novo México, pontas de flechas e ferramentas feitas de ossos de animais. Os artefatos pertenciam a humanos que habitaram a região em torno de 13 mil anos atrás. 

Encontrou-se ainda um fóssil associado a este grupo em Montana: partes do esqueleto de 12.600 anos pertencentes ao Garoto de Anzick-1, que viveu no máximo 17 meses. Era a Cultura Clóvis.  

Por décadas, a teoria ‘Clóvis-First’ ou ‘Clóvis primeiro’ vigorou soberana. Até que sítios arqueológicos no México, Venezuela, Brasil e Chile trouxeram evidências de ocupações ainda mais antigas. Arqueólogos americanos viram com ceticismo as descobertas. A teoria resistiu. 

— Ela é perfeitamente compartilhada por colegas aqui no Brasil. Aliás, a maioria dos colegas têm um grande ceticismo em relação a ocupações pleistocênicas. Por uma razão simples: não a conhecem — pondera Fabio Parenti.

Pontas de flexas: Cultura Clóvis

Pleistoceno foi uma época geológica antes da atual. Vivemos no Holoceno, que começou após a última grande glaciação, há pouco mais de 11 mil anos. 

A maioria dos estudiosos reivindica evidências mais consistentes para considerar um povoamento anterior nas Américas. 

— Primeiro povoamento, entre aspas, é feito por grupos pequenos. Então, a possibilidade de encontrar coisas muito antigas e pequenas é baixa Não tem esqueleto humano anteriores a 13,5 mil a 14 mil anos nas Américas todas, então, isto já é um indício que o povoamento é muito mais recente do que nos outros continentes ou pelo menos é muito mais demograficamente fraco — conta Parenti. 


Sítios arqueológicos mais antigos nas Américas










O mais antigo esqueleto encontrado no Brasil pertencia a uma mulher que viveu há mais de 11 mil anos, na região de Lagoa Santa, em Confins, Minas Gerais.  Havia sido descoberto em uma gruta pela arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire, em 1975. 

Ao ser estudada por Walter Neves, nos anos 1990, recebeu o nome de Luzia. Era uma jovem de 20 anos que fazia parte de um grupo de coletores e caçadores.  

Já os restos mortais mais antigos descobertos em toda a América são de uma mulher que viveu há 13 mil e 500 anos na Península do Yucatã, no México. É apelidada de Eva de Naharon. Com base em seu crânio, o designer brasileiro Cicero Moraes reconstituiu a sua face. 

A descoberta de fósseis humanos, restos de fogueiras e ferramentas primitivas apontaram na direção de uma ocupação pré-Clovis nas Américas.

Arqueólogo Fabio Parenti

— A existência de coisas claras, por poucas que sejam, é importantíssima. Por exemplo em Taima-Taima, sítio venezuelano, tem uma belíssima ponta de 10 cm enfincada dentro de um esqueleto de um mastodonte, datado de 14 mil anos. Acabou o papo — observa o arqueólogo italiano Fabio Parenti. 

— Óbvio que existe um longo debate arqueológico sobre a presença da humanidade no continente americano, com muitas evidências heterogêneas. Tem muitos, né? Mas tampouco são sítios que convergem numa maneira muito clara, numa cronologia específica. São processos difusos que a gente segue estudando para entender melhor — argumenta o bioarqueólogo André Strauss, da Universidade de São Paulo.

Especialmente, os achados em Monte Verde, no litoral chileno, passaram a ser mais aceitos pela comunidade científica. Em escavações iniciadas em 1977, descobriram um acampamento de 20 a 30 indivíduos, com datação superior a 14 mil anos, portanto anterior a Clóvis. Entre as evidências estão restos de carvão, fragmentos de ossos de animais carbonizados e artefatos líticos. 

— Muito se escuta dizer por aí que o paradigma Clóvis caiu. Ah, agora todo mundo acredita em ocupação pré-Clóvis. O que é aceito pela grande maioria dos especialistas é que existiram ocupações humanas imediatamente pré-Clóvis. Coisa de 500, mil, dois mil anos antes de Clóvis. Três mil que seja. Isso é razoavelmente aceito. Você tem sítios nos Estados Unidos muito claros como Debra L.Friedkin, Buttermilk Creek Complex (Texas). Você tem Monte Verde, 14 500 na América do Sul, mas ainda estamos falando de uma cronologia de ocupação da América pós-último máximo glacial — acrescenta Strauss. 


Pedra Furada é um dos lugares mais antigos de ocupação
humana no Brasil (foto: Élcio Braga)

A pedra - Parte 3

O debate sobre a chegada dos primeiros humanos à América incendiou com as pesquisas de Niède Guidon. Segundo a arqueóloga, escavações no Boqueirão da Pedra Furada, indicam ocupações bem mais antigas que as da Cultura Clóvis.  

Arqueóloga Niède Guidon
— Em 1978, fizemos uma escavação muito grande, as datações indicavam idades que iam até 60 mil anos. Aí houve, então, alguns colegas americanos, não todos, que disseram: ‘Não, não é possível’. ‘O homem chegou à América pela América do Norte há 14 mil anos, não poderiam estar no Piauí há 50 - 60 mil anos atrás’ — conta a arqueóloga Niède Guidon.


A Serra da Capivara guardava um segredo há milênios só conhecido por moradores locais. Um evento em 1963, no Museu do Ipiranga, em São Paulo, mudaria tudo.

— Tínhamos organizado uma exposição sobre pinturas rupestres no Brasil. Na ocasião só as de Minas Gerais eram conhecidas. E uma pessoa que foi visitar pediu para falar com a responsável, me chamaram, e ele me mostrou umas fotografias. E disse: ‘Olha, isso aqui é lá no Piauí, perto da minha cidade, que é Petrolina, e tudo’ — recorda Niède.


A Serra da Capivara possui mais de 1 mil sítios
(foto: Alex Ribeiro)

A descoberta seria extraordinária: a maior concentração de sítios com pinturas rupestres do mundo. Uma galeria de arte da pré-história. 

A arqueóloga Niède Guidon tentou conhecer a Serra da Capivara ainda em 1963, mas com o acesso obstruído devido a temporais, teve de desistir. Só pode retornar dez anos depois, já como professora da renomada Escola de Autoestudos de Ciências Sociais de Paris. 

— Consegui, então, chegar até o povoado de Várzea Grande, falar com as pessoas e eles me mostraram cinco sítios com pinturas. E eu fiz as fotos e, com isso, eu já consegui na França criar, então, uma missão permanente para o Piauí. E, aí, todo o ano, durante as férias na França, eu vinha com meus alunos fazer trabalho de campo aqui — diz Niède. 

Formada em História Natural pela USP e especializada em Arqueologia Pré-Histórica pela Universidade de Paris 1, Niède percebeu a grandiosidade dos sítios arqueológicos em plena Caatinga. Deixaria a confortável vida em Paris, com seus cafés sedutores, para se instalar de vez na empoeirada e intrigante Serra da Capivara. 

— As descobertas foram cada dia mais importantes. Fizemos escavações, datações e, face a importância dos sítios, fizemos um relatório para o governo brasileiro, dizendo que tinha de ser um parque nacional, tinha que proteger não só as pinturas como também a natureza — observa a arqueóloga. 


O trabalho de Niède surtiu efeito. O Parque Nacional da Serra da Capivara foi criado em 5 de junho de 1979. 

— Lá no alto do planalto temos ainda restos de espécies animais e vegetais da Floresta Amazônica, e aqui na planície da Mata Atlântica. Quer dizer, os dois biomas se encontravam aqui. As pesquisas que nós fizemos mostraram que até 9 mil anos atrás nós tínhamos aqui esses biomas e o clima era o tropical úmido. Só aí que começou a secar e a Caatinga se instalou — descreve Niède Guidon. 

O cenário é deslumbrante na Serra da Capivara. 

— As plantas da Caatinga têm folhas pequenas, exatamente pra conviver melhor com esta falta de água que existe no Nordeste. E elas perdem as folhas na época da seca. São plantas com caules mais claros, por isso daí vem o nome Caatinga que quer dizer mata branca, palavra indígena, palavra tupi, que quando caem todas as folhas você vê tudo cinza, tudo claro. Então, essa cor cinza é exatamente para não acumular calor. A gente fica pelo menos uns oito meses sem chuva. E elas têm raízes rasas — diz a guia Cida Pereira, uma das mais experientes no Parque Nacional. 

Aos viajantes, ela explica como a terra reage aos tempos de seca.

—  Aí, vai ter de esperar agora um bom tempo para se refazer, nascer outras árvores e crescer, porque a maioria morreu. Olha como... e aí o vento vai derrubando tudo. O normal era elas ficarem sem folha e, nas primeiras chuvas, nascer a folha. Só que fica muito tempo, dois, três anos, sem chover, aí, elas não suportam, morrem — explica a guia. 

Há mais de 11 mil anos a Serra da Capivara era bem diferente. 

— Tinha o tigre dente-de-sabre, tinha também o tatu gigante, vários animais gigantescos, que nós temos os fósseis — descreve Niède.  

Do alto da montanha, Cida explica em detalhes aos visitantes como era a vida na Serra da Capivara nos primórdios. No horizonte, o mar seco da Caatinga.

— É lá onde ficam situadas as lagoas onde foram encontrados os ossos da megafauna. A megafauna foram animais gigantes que viveram aqui e foram extintos há mais de dez mil anos. É um local bem especial, um local bem interessante que você dá para ver exatamente a diferença. Do lado de cá era uma vegetação típica da Mata Atlântica, uma mata tropical úmida, e do lado de lá era mais tipo Savana. Então, esses animais gigantes tinham mais liberdade de locomoção onde a vegetação era mais tipo uma savana — conta a guia. 

Os principais registros desse tempo estão no Museu do Homem Americano, em São Raimundo Nonato, e no Museu da Natureza, em Coronel José Dias, ambos nos arredores do Parque da Serra da Capivara. 

A preguiça-gigante chegava a 4 metros
de altura e 6 metros de comprimento

— Nós temos os fósseis para mostrar como se formou tudo aqui. Como era quando era o mar e como tudo aconteceu até, então, a chegada da Caatinga — diz Niède Guidon.

As unidades são administradas pela Fundação do Museu do Homem Americano (Fumdham), que tem a arqueóloga Niède Guidon como presidente emérita.  

Inicialmente, Niède publicou suas descobertas na prestigiosa revista ‘Nature’, em 1986. Surpreendeu a todos ao dizer que os humanos teriam chegado às Américas há 32 mil anos. 

Baseada em pesquisas mais recentes, Niède retrocedeu ainda mais no tempo. Passou a defender que os humanos já estavam no Piauí há mais de 100 mil anos. 

— Nós tivemos datações que foram feitas com Carbono 14 que confirmaram uma idade mínima de mais de 60 mil anos da presença do homem aqui — destaca a arqueóloga. 

O Homo sapiens, segundo Niède, teria chegado à América direto da África, o que contraria a teoria mais aceita. 

— Vieram da África, porque a África 130 mil anos atrás passou por uma seca muito grande que originou os desertos. E as pessoas saíam muito ao mar, para ir pescar, ter comida, porque na terra não tinha mais comida. E os ventos e as correntes trazem aqui para o Nordeste do Brasil. Então, o grupo que saiu para pescar, uma tempestade pode ter trazido para cá. O nível do mar era muito mais baixo: 60 metros abaixo do nível atual, com muitas ilhas nas quais eles podiam ficar — afirma Niède.   

Mas não é com a água que Niède sustenta a sua teoria: é com o fogo. 









A fogueira - Parte 4

Uma simples fogueira que se apagou há milhares de anos pode trazer luz ao debate sobre a ocupação das Américas. Entre as comprovações mais antigas citadas por Niède estão pedaços de carvão no Boqueirão da Pedra Furada, que seriam resultado de uma fogueira. 

— Muitas fogueiras na Pedra Furada, muitas — diz ela, associando os achados a presença humana.

Nièdes buscaria muito mais provas.

— Quando cheguei à idade de aposentadoria, a França me aposentou, mas a missão francesa continua vindo todo ano, dirigida agora por um colega de Paris, que é especialista em sítios mais antigos. E esse meu colega francês está descobrindo mais coisas, outros sítios com datações antigas — assinala a arqueóloga. 

O colega a que Niède se refere é o conceituado arqueólogo Eric Boëda, da Université Paris Nanterre. Mas o arqueólogo francês é mais cauteloso e situa os achados mais antigos em 40 mil anos. 

Bioarqueólogo André Strauss
— No caso da Serra da Capivara, tem um trabalho muito bem feito do professor Eric Boëda, que hoje coordena o trabalho lá. Trabalhei lá com o professor Eric Boëda. Tem gente que está convencida, como ele. Eu, como minha especialidade são os esqueletos humanos, brinco com ele: até aparecer um esqueleto humano com mais de 12 mil anos, especialmente 30 mil anos, tenho dificuldade pessoalmente de me convencer — ressalta André Strauss. 

Os sítios no Boqueirão da Pedra Furada são apresentados pela guia Cida Pereira.

— E aqui é o que a gente chama de bloco testemunho que é o que o professor Eric Boëda está escavando e que está se comprovando as datações que já se tinham conseguidas há 30 anos: as fogueiras, os instrumentos de pedra lascada, fezes fossilizadas, seixo que estava na fogueira que foi datado de 100 mil anos, foram todos aqui — relata Cida.   

— Aqui nós estamos no que a gente chama de trincheira arqueológica. O Objetivo desse trabalho é coletar material para datar a época dessa queda de bloco. O que foi datado foi alguns carvões que foram encontrados espalhados que tiveram uma datação de 40 mil anos. Mas também desse espaço aqui foi retirado sedimentos para fazer a datação pelo método de LOI, que é a luminescência Oticamente Induzida. Ele vai datar o sedimento a partir do momento que ele parou de receber a luz solar. Então, quando ele parou? Quando este bloco caiu aqui — acrescenta. 

Trincheiras são cavadas para acessar
as partes mais antigas do sítio

O método pode indicar a idade em que um bloco caiu sobre uma suposta fogueira.  

— É um sítio arqueológico a céu aberto que foi descoberto depois do trabalho da professora Gisele Daltrini que tinha como objetivo comprovar a veracidade dos carvões que foram encontrados no sítio principal ali que foi no Boqueirão da Pedra Furada. Ela fez várias trincheiras aqui no vale e não encontrou nenhuma quantidade de carvão que comprovasse que aqui teve um incêndio — esclarece a guia. 

— Você tem exemplos evidentes, como nós temos lá no Piauí, de fogueiras claramente feitas por pessoas porque tem uma escolha geométrica. Mas junto a elas tem também áreas de combustão que são ambíguas, que poderiam muito bem ser provocadas por incêndio natural — pondera o arqueólogo Fabio Parenti. 

Pedra lascada por humanos
na Serra da Capivara
—  A ideia de que a América foi ocupada antes desse último máximo glacial, ocupações de 50 mil, 130 mil anos, essa ideia ainda é vista como propositiva, na melhor das hipóteses, com evidências extremamente tênues, que nem por isso deixam de merecer atenção. Pelo contrário. Justamente porque se esse evento de ocupação, se ele existiu, deve ter sido muito tênue, uma densidade demográfica muito baixa, é que vai demandar muito trabalho de nossa parte para conseguir comprovar de forma convincente e cabal de que de fato aconteceu — argumenta André Strauss.  


Nem mesmo as ferramentas atribuídas a humanos primitivos são provas contundentes na Serra da Capivara. E um macaco é um dos responsáveis pela polêmica. 

Pedras lascadas involuntariamente por macacos
na Serra da Capivara (crédito: Fabio Parenti)
— O macaco prego aqui da nossa região é muito esperto. É um macaco que segundo algumas pesquisas ele está na idade da pedra lascada. E faz instrumentos para caçar, por exemplo. O lagartinho entra numa fenda, ele não consegue pôr a mão lá, ele faz uma varinha, faz uma pontinha e cutuca o lagarto para ele sair de lá ou conseguir espetá-lo e comer. Ele pega milho, o milho está seco, está duro, ele coloca dentro da água para amolecer — conta Cida.  


Com tanta habilidade, estes macacos poderiam estar por trás das pedras lascadas na pré-história? O arqueólogo Fabio Parenti alerta sobre a necessidade de olhar para a qualidade dos supostos artefatos. 

— Na mesma região, a presença de macacos que praticam involuntariamente, batendo pedra com pedra a construção de lascas. Agora, essas lascas têm uma lógica de construção muito mais simples. É preciso descer nesses detalhes técnicos para depurar, separar, o ouro da areia. Tem ambas as coisas no mesmo depósito. Dizer simplesmente que pode ter sido não é ciência. É papo de boteco — argumenta. 


Testes de laboratório nos levam aos nossos
ancestrais mais distantes

A genética - Parte 5

Além das escavações, podemos recorrer à genética em busca de respostas sobre ocupações nas Américas. Trazemos no DNA informações sobre nossos ancestrais mais distantes. Então, por esse método, quando teria ocorrido a migração para as Américas? 

— É alguma coisa assim: 20 mil anos. E de onde vem esta informação? Vem do cálculo do famoso relógio molecular que ficou famoso na década de 80, com a Eva mitocondrial — avisa André Strauss.

Mulheres massai fotografadas durante
a expedição Roosevelt, em 1909

Todos os humanos hoje na Terra, todos, absolutamente todos, são descendentes de uma mulher que viveu na África há pelo menos 150 mil anos. É a mãe de todos nós. Carregamos os seus gens. Ela é o nosso ancestral comum mais recente. Os cientistas a chamam de Eva Mitocondrial. A conclusão consta em estudo publicado na Nature, em 1987. 

Não é que ela fosse a única mulher. Ela vivia numa pequena comunidade de homens e mulheres. Mas apenas a sua herança genética se espalhou pelo mundo. Por isso, muitos a chamam também de Mãe de Sorte. 

O DNA mitocondrial é uma sequência genética encontrada em nossas células, armazenada na mitocôndria, repassada apenas pela mãe. 


— A diversidade genética de uma dada população é um reflexo direto do tempo que passou desde que esta população passou a divergir entre si. Basicamente se traduz diversidade em tempo. E a diversidade genética das populações atuais das Américas bem como das populações inferidas pelas análises arco genéticas dos remanescentes arqueológicos todas elas indicam que essa população não pode ter divergido há mais de 20 mil, 22 mil anos — ensina o bioarqueólogo André Straus. 


O bioantropólogo Walter Neves formulou uma teoria sobre a ocupação das Américas anterior aos antepassados dos índios atuais.  

— Os geneticistas analisando a diversidade dos índios atuais eles tem concluído, desde sempre, há décadas, que houve apenas uma migração aqui para a América. Então, no final dos anos 80, junto com um colega da Argentina, o professor Hector Pucciarelli, nós chamamos o nosso modelo de um modelo dos dois componentes biológicos principais. Teria primeiro entrado os paleoamericanos e talvez, dois ou três milênios depois, teriam entrado os mongoloides, que deram origem aos índios atuais — explica. 

— Porque quando eu estudo os crânios das populações desde as mais antigas, que aqui no laboratório a gente chama de Povo de Luzia, mas tem um nome técnico para isso, chama-se no geral de paleoamericanos, eu vejo claramente que há dois padrões morfológicos. Um paleoamericano, que tem crânios compridos e estreitos, face baixa, prognatismo facial, nariz baixo e largo, órbitas oculares também baixas e largas — completa.  


Sioux, em foto de 1908,
(John A. Johnson / Library Congress)

Paleoamericano é como são definidos os primeiros humanos que ocuparam as Américas. 

— Esta morfologia paleoamericana é muito parecida com a morfologia que a gente encontra hoje na australo-melanésia. Essa semelhança entre os primeiros americanos e os australianos é porque eles repartem um ancestral comum no Sudeste Asiático, não por que houve uma migração da Austrália para cá — esclarece. 

Segundo a teoria dos dois componentes genéticos, uma segunda leva de humanos, mais vigorosa e de outra região da Ásia, teria prevalecido e substituído a anterior. 


— Os indígenas atuais, eles têm uma morfologia, que nós chamamos de morfologia ameríndia, corresponderia ao que se chama na Ásia de populações mongoloides. Elas apresentam crânios curtos e largos, sem prognatismo facial, então há um retraimento da face, elas apresentam face alta, nariz alto e estreito, e órbitas altas e estreitas também — observa Neves. 

No entanto, duas pesquisas, uma da Universidade de Harvard, e outra da Universidade de Copenhague, publicadas em 2018, comprovaram que os povos mais antigos das Américas possuíam a mesma origem. André Strauss explica os resultados.



— Pela primeira vez se conseguiu extrair o DNA de esqueletos antigos de diversos sítios arqueológicos pelas Américas. Num 'paper' do sítio da Lapa do Santo, que nossa equipe escava desde 2011, e no outro material da Gruta do Sumidouro, que é uma gruta que foi escavada na primeira metade do Século XIX pelo naturalista Peter Lund. Foi a primeira vez que se conseguiu extrair DNA desses materiais tão antigo, 10 ou 9 mil anos atrás — diz. 

A semelhança entre siberianos
e os índios brasileiros
No total, foram sete esqueletos da região de Lagoa Santa. A amostra faz parte do chamado Povo de Luzia, embora não seja da mesma época que a mulher que dá nome a esse povoamento. 

— Aquela história que pode ter vindo da Polinésia, ter cruzado a Ásia, o Atlântico, nada disso se confirma. Muito pelo contrário — argumenta Strauss. 

Esta coleção de ossadas serviu de base a Walter Neves para embasar a teoria de que a América havia sido ocupada inicialmente por um povo que compartilhava os mesmos ancestrais que os aborígines australianos, por isso teriam traços negroides. 

— O que fica claro com os dados arco-genéticos é que, com exceção do Ártico, todos os grupos ameríndios atuais, bem como todos os esqueletos antigos da América para os quais até o momento conseguimos obter dados genéticos, fazem parte de uma mesma população. Então, nesse sentido são ameríndios, são nativos americanos — assinala o bioarqueólogo.  

Então, como poderíamos explicar as diferenças morfológicas entre os primeiros ocupantes da Cultura Clovis com as do Povo de Luzia? 

— Essa diversidade, ela não tem origem fora do continente, mas são processos microevolutivos que acontecem dentro do próprio continente americano — conta André Strauss. 

As pesquisas com DNA não contaram com material genético de Luzia. Mesmo assim, foi o suficiente para se redesenhar o rosto da chamada primeira brasileira, famoso com os traços negroides. Agora, traz os traços mais próximos aos dos índios atuais. 

O grande incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 2018, destruiu parte dessa relíquia, reencontrada chamuscada entre os escombros.

Mas mesmo a genética ajuda a trazer mais dúvidas sobre a ocupação das Américas. Entre os restos dos indivíduos analisados em Minas Gerais, um deles apresentou um componente genético diverso. 

— Teve um indivíduo de Sumidouro que apareceu esse sinal que ficou famoso que é o da tal população Y. Que talvez indique algum tipo de excesso de afinidades com populações do Sudeste da Ásia. Acontece que com exceção desse único indivíduo do Sumidouro as outras centenas e centenas de esqueletos arqueológicos da América do Sul, Central, Norte, Ártico, Nordeste da Sibéria, de 100 a 10 mil anos atrás, absolutamente nenhum deles, apresentou esse sinal. Por um lado, ele pode ser um problema estatístico ou, se ele existe, é sem dúvida hoje um dos maiores enigmas, por assim dizer, da genética de populações humanas — avalia Strauss. 

Existem, porém, algumas explicações para a presença desse componente genético. 

— Quais são as possibilidades? A mais midiática, já te digo, é que de fato esse sinal representa aí uma reminiscência, uma espécie de sinal atávico, de uma população muito antiga que existiu na América do Sul. E que a gente não tenha nenhum conhecimento. Pode ser? Pode. Mas é muito improvável. Qual é a explicação mais pé no chão? E de que essa era uma variante que já existia nas populações fundadoras ameríndias. Só que em baixíssima frequência. A resposta honesta é não sabemos, não se sabe, é uma questão em aberto — comenta o especialista. 

— Não esqueçamos que toda a análise genética é feita em cima de populações atuais e não pré-históricas. Trabalham em cima de material recente ou populações atuais ou esqueletos que têm poucos milhares de anos e não são pleistocênicos. Esse é o ponto. Até agora não foi encontrado uma população esquelética humana plenamente pleistocênica — acentua Fabio Parenti.  

André Strauss ressalta que não há evidências claras de presenças mais antigas nas Américas.

— Ah, e se existiu uma população há 40 mil anos e há 30 mil anos ela desapareceu sem deixar rastro. Neste caso, esses dados genéticos não vão refletir a existência dessa população. Porque se tinha gente na Serra da Capivara há 30 mil anos, 40 mil anos, e a gente está dizendo que as populações que a gente conhece, a partir de dez mil anos atrás, guardam nenhuma relação genética com esses povos, o que aconteceu com essa população? Desapareceu completamente, sem deixar um descendente? E aí a gente tem de olhar ao redor do mundo. Porque ao redor do mundo tiveram vários casos de substituição populacional, mas nem o caso da substituição populacional dos neandertais na Europa chegou nesse nível de desaparecimento completo.  

O bioarqueólogo da USP observa que o Homo sapiens demorou a atingir outras regiões que estavam até mais perto da África.

— Bom lembrar, inclusive, que as ocupações mais antigas de Homo sapiens na Sibéria e no Nordeste Asiático não antecedem 40 mil anos. Bom lembrar inclusive que o Homo sapiens não sai da África antes de 60 mil anos, dependendo de onde estiver, 70 mil anos — acentua. 

Patricia descobriu que possui 2,5% de
participação do neandertal em seu DNA

A genética pode nos oferecer muito mais na busca de nossas origens. Laboratórios disponibilizam kits para quem tem curiosidade sobre a ancestralidade. Esta viagem no tempo custa em torno de 100 dólares. A gestora de previdência Patricia Melo e Souza queria conhecer sua origem e procurou um laboratório.  

— Eu tinha muita curiosidade para saber sobre os meus ancestrais. Adquiri um kit e foi um exame muito simples. Eu só tive de colocar um pouco de saliva num tubo. O pacote já vem preparado. Você devolve ali o material e coloca no Correio. Semanas depois chegou um link no meu e-mail e eu pude então navegar e conhecer minha ancestralidade — diz. 

As novidades são muitas. Prepare-se caso resolva fazer o teste. 

— Tenho 78% de origem europeia, com concentração em Portugal. E tenho 10% de origem indígena americana, o que pra mim foi uma surpresa. Mas as surpresas não pararam por aí. Eu tenho alguém do Egito no meu passado. E também tenho pessoas de vários países, diferentes países da África, e no meio de tudo ali tem até 0,5% de participação chinesa. E ainda por cima surgiu na história, um neandertal, com uma participação de 2,5% no meu DNA — revela.  

Precisamos, no entanto, ir além dos dados genéticos para compreendermos melhor o povo pré-histórico do Piauí. Estes humanos deixaram parte de suas vidas gravadas nas pedras. 


No Boqueirão do Pedro Rodrigues,
a primeira etapa da visita









As pinturas - Parte final   

— A gente vai entrar ali no Boqueirão do Pedro Rodrigues. Vamos visitar um sítio arqueológico com pinturas e vamos ter uma visão panorâmica bem extensa do parque — convida Cida Pereira.

A guia mostra uma rocha com algumas imagens gravadas.

Pinturas foram feitas com minerais
— Aqui nós temos um sítio arqueológico. Aqui são as pinturas na rocha. Pinturas de cor vermelha, cinza e branca, São todas pinturas feitas com mineral. O vermelho é o óxido de ferro, o branco é a caulinita (kaolinite), amarelo que é a goethita, preto que é o carvão e o cinza, uma das principais misturas é o branco com vermelho, apesar de que ele vai ter outros minerais juntos — detalha Cida. 

Ela aponta para uma pintura na rocha, quase na altura do chão.

A guia Cida Pereira sobe até a parte
parte alta e ter visão panorâmica da região

— A gente imagina que as pinturas estão normalmente na altura de uma pessoa. E aqui a gente vê pinturas bem no chão. Acreditamos que mais embaixo tenham pinturas porque esse sítio tem tudo para ter sido soterrado pela posição em que se encontra — assinala.  

As imagens retratam o cotidiano de um povo coletor de frutos e raízes e caçador. 

O cenário impressiona na Serra da Capivara
(foto: Alex Ribeiro)
— Aqui a gente está vendo uma fila de pinturas que a gente reconhece como sendo figuras humanas. Eles parecem que estão em movimento, celebrando alguma coisa — diz. Em outro trecho, mais desenhos.

— Este aqui parece que está em movimento, correndo, olhando para trás. Tipo: está sendo perseguido — acredita ela. 


Pedra Furada, o orgulho de Cida Pereira
(foto: Severino Silva)

A guia percorre outra área mais alta do Parque Nacional da Serra da Capivara.

— Daqui a gente tem uma visão da Pedra Furada. Lá embaixo está a Pedra Furada. É um paredão de arenito, que foi esculpido pelo tempo, o vento, os intemperismos, as águas, aquela obra da natureza, que é o nosso cartão postal e o nosso orgulho. Pedra Furada... — orgulha-se. 

Cida explica a sintonia com a Pedra Furada. 

— O Boqueirão da Pedra Furada é a nossa pérola. Foi aqui que foi encontrado vestígios da presença mais antiga do homem aqui na América. Aqui foram encontradas muitas fogueiras. Foram encontrados mais de 7 mil 500 artefatos de pedra lascada, foram encontradas fezes humanas fossilizadas que a gente conhece como coprólito. 

O paredão do Boqueirão da Pedra Furada: mais
de 1.100 pinturas rupestres (foto: Alex Ribeiro)
— Olha, as pinturas mais antigas estão datadas em 12 mil anos. São essas pinturas menores. Essas preenchidas que a gente olha e vê movimento. E aí, à medida que o tempo vai passando, elas vão ficando mais elaboradas. É aí a gente vê que são pinturas mais recente. É entre 12 e 3,5 mil anos. 

— Esse sítio aqui é considerado um museu a céu aberto. Ele tem mais de mil pinturas no paredão e assim uma narratividade muito grande. A gente percebe que foram vários povos que passaram por aqui e que deixaram a sua marca aí na parede. 


Imagem que parece ser de um tatu
está um pouco apagado
— Aqui começam as pinturas desse sítio. São mais de 70 metros por 3 de largura, onde a gente vai encontrar várias cenas, cenas de dança, cenas de caça, cena de sexo, muitos animais. 

— Às vezes, a gente coloca a imaginação para funcionar baseado em fatos da nossa cultura, da nossa vivência. Não sabemos se realmente seria isso. 

— Aqui nós temos cenas de animais. Esse que está um pouco estragado parece um tatu. Os outros parecem veados. Aqui lembra um felino.  

Dois primitivos representados
com o órgão genital 

— Aqui é a cena do sexo entre pessoas do mesmo sexo. Pode ter sido simplesmente a perspectiva. A maneira como ele fez um desenho. Mas a gente com a mente meio poluída... os dois estão com os braços para cima, a cabeça no centro, né?  

— Aqui nós temos um caranguejo. Esse lagarto branco, muito bonito aí, parece muito com o jacaré, em cima esse grande lagarto. Em cima da cauda do lagarto tem um veado de uma cor amarelada com um preenchimento na barriga de vermelho. 

Em outra imagem, o destaque é ainda maior
para o órgão genital masculino

— Por que? olha? O pênis muito maior do que as
pernas. As pernas fininhas... este cabra era poderoso.  

Todo esse material sofre ameaças. 

— Tem sempre uma equipe para tirar com cuidado casa de Maria Pobre que é uma vespa que tem aqui na região, para tirar casa de cupim. Uma coisa que está acontecendo e não tem o que ser feito. É irreversível porque vem de dentro para fora. É o sal da rocha: ele sai e vai cobrindo as pinturas — diz. 

Cena de sexo ou parto? Interpretações
variam entre os visitantes

— Um tatu. A gente vê nitidamente que é um tatu. Pelo menos, pensamos que é um tatu. Dá pra ver?
Está bem nítido. Bem vermelho. 

Há figuras que nos tocam mais: nos fazem imaginar.  

— Aqui nós temos a cena do beijo. Aqui temos estas duas figurinhas que parecem humanas dando um beijinho um no outro.   


A cena do suposto beijo é uma das que
mais chamam a atenção dos turistas
— Aqui tem uma cena que alguns dizem ser uma cena de parto outros dizem que é cena de sexo. Aqui nós temos uma cena de caça, onde a figura humana persegue um animal. E aqui neste outro nicho a gente tem um desenho que é utilizado como símbolo do parque. Ele foi escolhido para ser o símbolo pela forma que ele foi feito. É um em cima e outro embaixo. Um pequenininho e outro grande. Eles são de épocas diferentes. O maior é bem mais elaborado, já tem um outro traço de maneira de pintura. É uma pintura muito bem feita.

Embora não haja consenso sobre ocupações humanas em tempos mais remotos na Serra da Capivara, o debate enriquece a nossa arqueologia. 

O símbolo do parque: feitos em épocas diferentes.
O mais recente é o de cima, mais elaborado
— A evidência ambígua é muito interessante porque é como a crítica. Estimula estudo, pesquisa. Santa ambiguidade que nos obrigou a melhorar os parâmetros estatísticos de análise de observação da evidência. Isso gera ceticismo pelos colegas. Então, as coisas demoram para serem aceitas. E, às vezes, não são, mesmo sendo verdadeiras — diz o arqueólogo Fabio Parenti. 

— A pergunta é: existem evidências que nos permitem concluir de forma satisfatória além de qualquer dúvida, que isto aconteceu? Eu acho que a resposta é ‘ainda não’. Estão sendo construídas, mas é um longo processo. Ciência é convencimento. Primeiro você convence a si mesmo. Mas não basta. Você tem de convencer o outro. No caso da Serra da Capivara, a gente não sabe ainda. Um trabalho que tem de continuar — observa o bioarqueólogo André Strauss.

Não sabermos exatamente quem ocupou a Serra da Capivara nos primórdios. Mas estas imagens nos fazem refletir não só sobre aqueles humanos primitivos, mas sobre nós mesmos. 

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